Síndrome patrimonial e crise da arquitetura e da cidade

De Indisciplinar
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Trechos do livro "Alegoria do Patrimônio" de Françoise Choay

Em outras palavras, a observação e o tratamento seletivo dos bens patrimoniais já não contribuem para fundar uma identidade cultural assumida de forma dinâmica. Elas tenderiam a ser substituídas pela autocontemplação passiva e pelo culto de uma identidade genérica. Os traço narcisistas que aí existem já devem ter sido notados. O patrimônio teria assim perdido sua função construtiva, substituída por uma função defensiva, que garantiria a recuperação de uma identidade ameaçada.

Pode-se, com efeito, interpretar essa profunda necessidade de uma auto-imagem forte e consistente como uma maneira, encontrada pelas sociedades contemporâneas, de lidar com transformações de que elas não dominam nem a profundidade nem o ritmo acelerado, e que parecem questionar sua própria identidade. pag. 240 e 241

O fim da década de 1950 confirmou uma revolução técnica marcada pelo advento da era eletrônica: a partir de então, memórias artificiais e sistemas de comunicação cada vez mais eficientesse desenvolvem em escala planetária e se associam a atividades cada vez mais diversas e complexas, refletindo-se, num processo de reação, sobre comportamentos e mentalidades. ... Mas os instrumentos eletrônicos ou eletronizados são de outra natureza: eles requerem - de nosso corpo e particularmente de nosso cérebro, que substituem, dotandeo-os de poderes até então insuspeitados - uma interiorização, uma integração e uma assimilação que escondem sua necessária mediação e fazem deles próteses de um novo tipo. É justamente por isso que, para qualificar a revolução ou a mutação que transformou a natureza técnica, proponho o adjetivo "protético", usado outrora por Freud[1]. Esse termo permite salientar a multiplicação das mediações e das telas que, por força do uso das novas próteses, se postam entre os homens e o mundo, assim como entre os próprios homens. Ele aponta também para a extensão da perturbação que a humanidade enfrenta atualmente. pags. 241 e 242

Assim, o transporte ultra-rápido e a quase instantaneidade das telecomunicações permitem-nos, cada vez mais, escapar às limitações tradicionais de lugar, de pertença ao espaço terrestre: funcionalmente, munindo-nos de uma mobilidade que nega a distância e permite-nos exercer uma atividade ubiquitária, assim como optar pelo teletrabalho; sensorialmente e socialmente, interconectando nossa experiementação corporal do mundo físico e esse contato direto com os outroa homens, cujo papel foi descrito, especialmente por Dino Formaggio, como "inter-somaticidade"[2]. Melvin M. Webber resumia os riscos dessa liberação espacial no título de um célebre ensaio "The Non-Place Urban Real"[3]. Sefgundo ele, a condição urbana estava prestes a ser definida apenas por puras relações imateriais, pela constituição de comunidades libertas de qualquer enraizamento. Essas instituições atualmente são confirmadas pelo desenvolvimento do ciberespaço, cujo poder irrealizante e a forma como nega duplamente a dimensão corporal da condição humana e o papel do corpo na constituição do laço social foram magistralmente demosntrados por Mark Slouka. Além disso, as próteses que nos libertam do liame local livramo-nos da duração para nos instalar, ao mesmo tempo, na instantaneidade. O tempo orgânico da rememoração, do cálculo, do questionamento, da espera, das marchas e conrtamarchas nos é recusado. Por sua vez, de uma outra maneira, o tempo cósmico das estações é esmagado pelas idas e vindas dos transportes aéreos de um hemisfério terrestre a outro, quer se trate de derramanr os milhares de turistas nas praias ou os legumes nos mercados. pag. 243

Essas observações rápidas são, aqui, meramente indicativas: trata-se de sugerir a extensão, não ssumida, de uma desestabilização da identidade. Não se trata de paresentar um quadro global da revolução cultural que levou à sindrome patrimônial. Contudo, visto que meu livro trata do patrimônio arquitetônico e urbano, evocarei de forma esquemática a indcidência da revolução eletrônica no campo da organização esppacial, o que permitirá esclarecer, de passagem, a dupla crise atual da arquitetura e da cidade. pag. 243

O impacto das "novas tecnologias" sobre o âmbito das edificações das sociedades da segunda metade do século XX pode ser resumido pela generalização e consagração de um "urbanismo de redes"[4], isto é, pela extensão, na escala dos territórios e do planejamento, de redes de infraestrutura técnicas, associadas ao gigantismo das redes de telecomunicações. Esse processo de reticulação dos espaços físicos naturais e não naturais tem seu funcionamento baseado numa nova lógica. Essa lógica "de conexão" distingue-se e opões-se às lógicas tradicionais locais de articulação do espaço contruído, que se baseiam na harmonização dos elementos construídos entre si e com seu contexto natural e cultural. As redes (fluidos, energias, transportes, informação, etc.) constituem um dispositivo sobre o qual basta a qaulquer estabelecimento humano - minúsculo ou gigantesco, singular ou formado por um agregado de inúmeras unidades - conectar-se para poder funcionar. pag. 243

As redes permitem ao homem libertar-se das limitações espaciais ancestrais (geológicas, geográficas, topográficas, etc.) que determinavam a localização, a implantação e a forma dos estabelecimentos humanos. Promovendo um espaço isotrópico, elas permitem tanto uma urbanização difusa e a reurbanização quanto a formação de nebulosas metropolitanas, aglomerados densos, com periferias concêntricas, assim como formações tentaculares ou lineares (ao longo dos vales fluviais ou do litoral), ou ainda estabelecimentos pontuais e especializados nos entrecruzamentos dos transportes ou em torno dos grandes equipamentos comerciais ou culturais (centros de pesquisa científica, museus e seus anexos). pag.243

Gostaria de observar duas consequencias negativas de sua crescente hegemonia (ref. à liberdade e eficácia odferecidas pelos dispositivos e pela nova lógica);

  • a primeira diz respeito à arquitetura. COntaminada pela lógica das redes, a arquitetura muda de status e de vocação: os edifícios individuais tendem cada vez mais a serem concebidos como objetos técnicos autônomos, passíveis de ser conectados, enxertados ou ligados a um sistema de infraestruturas, liberados da relação contextual que caracterizava as obras da arquitetura tradicional. A figura do arquiteto perde seu papel de intercessor, e amaravilhosa vocação que lhe dirigia Eupálino ecoa agora vazio. O engenheiro tende a substituir o arquiteto para conceber e contruir na tridimensionalidade objetos utilizando-se de todos os recursos de assistência eletrônica e de virtualização. O arquiteto, por sua vez, torna-se um produtor de imagens, um agente de marketing ou de comunicação, que só trabalha agora em três dimensões fictícias. No melhor dos casos, ele fica limitado a um jogo gráfico ou mesmo plástico, que rompe com a finalidade prática e utilitária da arquitetura e que o inscreve na estética intelectualista do escárnio e da provocação, característica das artes plásticas contemporâneas. pag.244

Referências

  1. Das Unbehagen in der Kultur (1929), trad. fr. C. e J. Odier, Malaise dans la civilisation, Paris, PUF, 1970, p.39: "O homem se tornou, por assim dizer, uma espécie de deus protético".
  2. Internomaticità, in L'Arte, Milão, Mondadori, 1981.
  3. Melvin M. Webber, Explorations into Urban Structure, Filadelfia, University of Pensilvania Press, 1964.
  4. Tive oportunidade de comentar sobre isso em muitos artigos. Em especial: "Le règne de l'urbain et la mort de la ville", in La Ville, Paris, Éditions di Centre Pompidou, 1994, e "De la démolition", Paris-Leège, Mardaga e Éditions de l'Arsenal, 1996.