Sistemas, redes e diagramas

De Indisciplinar
Ir para: navegação, pesquisa

1.1 SISTEMAS, REDES, DIAGRAMAS


Nesta seção serão abordados os conceitos de sistemas, de rede e de diagrama a orientarem o desenvolvimento do presente trabalho. Buscarei relacionar noções de sistema desenvolvidas pela cibernética (em especial pela cibernética de segunda ordem), aos pressupostos da Teoria Ator Rede, de Latour; e às propostas de rizoma e de diagrama de Deleuze e Guattari. 


O prefixo cyber é habitualmente utilizado na linguagem cotidiana, em referência aos diversos ambientes, práticas e objetos que possuem alguma relação com computadores, ou com a internet: cyberespaço, cybercultura, cybercafé, cybersexo, e daí em diante. Embora a cibernética possa se adequar perfeitamente à investigação do universo computacional – o que ocorre com frequência, como veremos mais à frente –, esses termos são empregados, usualmente, com uma conotação estereotipada (com a intenção de exprimir situações “anti-humanas”, automatizadas ou robotizadas), ou remetendo restritamente às tecnologias digitais. Trata-se, no entanto, de uma ciência muito mais abrangente e aplicável a vários campos de conhecimento, definida por Norbert Wiener, um de seus fundadores, como o “estudo da comunicação e do controle no animal e na máquina”, ou, como acrescenta Glanville, “da comunicação e do controle, em geral”. Trata-se, portanto, do estudo de sistemas.


Ao pensarmos em sistemas de controle, costumamos presumir algum tipo de arranjo contendo uma série de componentes tidos como os controladores, e outros tidos como os controlados. A noção de feedback, um dos princípios fundamentais da cibernética, nos permite imaginar tal relação de maneira distinta. Para ilustrá-la, Glanville apresenta o exemplo do termostato, sistema composto por dois elementos: um aquecedor, que fornece calor para o ambiente, e uma chave contendo um sensor, que liga e desliga o aquecedor, conforme a temperatura local. À primeira vista, poderíamos afirmar que a chave é que controla o sistema, pois é ela que ativa, ou não, o aquecedor. Porém, da mesma forma, o aumento da temperatura, causado pelo aquecedor, também comanda a ação da chave. “A estabilidade desse sistema não existe no sensor/chave, ou no aquecedor. Ela se situa entre ambos”. É estabelecida, portanto, uma relação de circularidade entre os integrantes do sistema.


A cibernética introduz o conceito da caixa-preta. Trata-se de um mecanismo fictício que permite que o observador de certo sistema atue, sem ter o domínio total dos processos ali envolvidos. Uma vez que o input e o output são conhecidos, a caixa-preta possibilita que os resultados sejam interpretados como a atuação de um instrumento invisível, inserido pelo observador. Ela é, então, um construto daquele que observa, um artifício que torna possível explicar/interagir com o sistema em questão. “Ao usarmos esse recurso, o observador é trazido para dentro do processo, ao invés de ter a sua interferência negada. A caixa-preta requer que a presença do observador seja reconhecida, e esteja circularmente conectada”. Tal constatação estabelece uma ruptura com a defesa tradicional da neutralidade científica e do distanciamento do investigador, rompimento que será levado mais a fundo na cibernética de segunda ordem, também conhecida como “cibernética da cibernética”.


A expressão de segunda ordem refere-se aos desdobramentos da cibernética dedicados à investigação dos chamados “sistemas observantes”, ou seja: aqueles nos quais se reconhece a presença do observador, sua interferência, e sua relação com o sistema observado. Adota-se uma postura que assume o pesquisador como integrante ativo do objeto em estudo, que o transforma a partir de sua intervenção e é, simultaneamente, transformado por ele (por seu objeto). 


Heinz Von Foerster revela a dimensão libertadora presente na cibernética de segunda ordem, a partir do momento em que se exploram, prioritariamente, questões metafísicas: “Nós escolhemos quem queremos nos tornar quando optamos por perguntas que sejam, por princípio, insolúveis”. A contrapartida dessa liberdade, contudo, é a responsabilidade por aquilo que se produz, da qual frequentemente é possível se isentar por meio do discurso de imparcialidade. A saída sugerida pelo autor para tal impasse é o que formula como seu postulado ético (o qual defende só ser aplicável a si mesmo, pois aplicá-lo a outros seria, por natureza, contraditório): “aja sempre de forma a aumentar o número possível de escolhas”. Destaca-se que Foerster dá ao termo escolhas (choices, no original) um caráter essencialmente decisório, de maneira diversa do que seria, caso argumentasse pelo maior numero possível de opções – levando a uma conotação muito mais eletiva. A “insolubilidade” estrutural das questões metafísicas traz à tona mais uma característica vital da cibernética de segunda ordem: a abertura à indeterminação. Ao reconhecer que as respostas a tais indagações residem mais em escolhas, do que em descobertas irrefutáveis, ampliam-se as alternativas e a liberdade de atuação, mas se desconstroem as possibilidades de soluções absolutas ou definitivas.


Foerster aponta que, enquanto a cibernética predecessora cria uma epistemologia para que se investiguem processos biológicos ou regulatórios “de primeira ordem” (como a homeostase ou a habituação); a cibernética de segunda ordem possui uma estrutura conceitual capaz de lidar satisfatoriamente com processos “de segunda ordem”, tais como a cognição, o diálogo ou as relações socioculturais. Trata-se, portanto, da abordagem de certos mecanismos ou sistemas a partir de aspectos relacionais. 


Além do reconhecimento do observador como parte do sistema observado, e da importância da circularidade, articulando teoria e prática, outros preceitos da cibernética de segunda ordem terão particular relevância para o presente estudo. Um deles é a noção de estabilidade tomada como uma característica dinâmica, inerente aos sistemas, vinculada à capacidade de manter ativas suas relações. A abordagem dos processos de comunicação e de aprendizado – seja entre humanos, entre homem e máquina, ou entre máquinas (também considerados como modalidades de diálogo e de construção de significado para os ciberneticistas) –, é outro ponto de bastante interesse.


A Teoria da Conversação, de Gordon Pask, demonstra como a comunicação é operação fundamentalmente circular e de segunda ordem: pode-se debater sobre a própria conversa. Seus participantes coexistem no diálogo, mas devem ser compreendidos como entidades separadas; a construção de sentido ocorre a partir da troca recursiva e da comparação mútua das interpretações de cada parte sobre o objeto em discussão. O entendimento do significado como algo conjuntamente construído pelos participantes é vital, pois distingue a conversação da simples transmissão de conteúdos codificados.


Pask desenvolveu vários experimentos visando explorar o potencial de diálogo e de aprendizado nas interações entre humanos, dispositivos e o ambiente que compartilham. Segundo Haque, “os experimentos iniciais de Pask com sistemas mecânicos e eletroquímicos fornecem um quadro conceitual para a construção de artefatos interativos que lidam com a dinâmica complexa dos ambientes, sem que se tornem prescritivos, restritivos ou autocráticos”. Essas experiências se diferem de grande parte de propostas mais recentes, agrupadas sob denominações como “ambientes inteligentes”, ou “interativos”, cuja abordagem costuma ser muito mais fechada, limitada e determinista. No lugar de reações/respostas preestabelecidas, a partir de inputs previsíveis, a ideia de Pask é que novos resultados/significados diferentes pudessem ser construídos continuamente por meio do diálogo que o sistema proporciona. Em contraposição, a postura prevalecente na computação ubíqua contemporânea, também conhecida como disappearing computer, “procura ocultar a complexidade da tecnologia, mas, de fato, remove o pouco controle que ainda temos sobre nossas condições ambientais, exigindo que apostemos tudo nas pressuposições dos designers de sistemas”.


Apesar de se ter demonstrado que a cibernética de segunda ordem não está restrita ao universo das redes digitais, podendo se aplicar ao estudo de estruturas de controle e da comunicação das mais variadas naturezas, Glanville defende que a internet é, de fato, um dos sistemas com maior potencial de representar o seu pensamento:


Sua maior evidência é essa conexão estranha e quase disforme de vasta complexidade, a internet, que compreende e obedece aos princípios da cibernética de segunda ordem de tantas maneiras: sua autonomia essencial, sua capacidade de se auto-reparar (pelo reencaminhamento) e de tomar decisões, seu envolvimento no diálogo (quando navegamos), sua capacidade de responder e de se adaptar (com e sem intervenção humana). Quando usamos a internet começamos a nos deslocar da noção de coleta de dados para a da construção de nosso próprio conhecimento (nosso saber).


Contudo, antes de nos voltarmos ao estudo das redes digitais de comunicação, especificamente, cabe aqui discutir, em linhas gerais, o conceito mais amplo de rede a nortear o trabalho em questão.


Apesar de ter se tornado uma expressão usada rotineiramente na atualidade – devido à associação inevitável com fenômenos contemporâneos, como a expansão tecnológica, ou a globalização –, segundo Marteleto, o conceito de rede não é próprio ao século XX, mas remonta a Hipócrates, conferindo-lhe um papel transversal no estudo dos fenômenos ligados à produção social de sentidos. Não seria, tampouco, uma substituição contemporânea “com nova roupagem conceitual e epistemológica”, da noção de sistema. Ao contrário, “afirma-se a continuação de um no outro, ou de um pelo outro, continuidade essa representada pela ideia de conexionismo”.


Podendo conformar-se a partir das mais diversas combinações entre elementos, o que mais interessa, no que diz respeito às redes, são as relações que possibilitam. Sua dinâmica não pode ser analisada a partir de uma díade (relação entre dois elementos), definindo a tríade como componente fundamental do social: “uma tríade não é a soma de três indivíduos, ela não é tampouco a soma de duas díades. A lógica não é mais aditiva, ela se torna combinatória, abrindo a possibilidade de estudar as estratégias de coalisão, de mediação, a transitividade das afinidades etc.”. Redes colocam os sujeitos coletivos como agentes centrais da geração de conhecimento, revelando a terceiridade como uma noção de maior importância. 


Bruno Latour propõe a Teoria Ator-Rede como metodologia de investigação para as ciências sociais, adotando conceitos de sociedade, de redes e de associações que serão bastante úteis ao presente estudo. 


Latour contrapõe as ciências sociais tradicionais, que identifica como “sociologia do social”, à abordagem que define como “sociologia das associações”. A “sociologia do social”, segundo a TAR, toma a sociedade como uma realidade dada, um quadro contextual em que são inseridos os atores e as relações sociais a serem investigados, conformando uma referência estática a partir da qual se desenvolvem as análises. Tal procedimento levaria ao apelo por “explicações sociais” preconcebidas e generalistas (relações de poder e de dominação, pressupostos psicanalíticos ou culturais etc.), que obscurecem as situações em foco. De maneira diversa, o autor propõe substituir a definição de social como um domínio pronto, ou um campo preexistente, por inúmeros processos dinâmicos de associação e de conexão. Para que isso seja possível, Latour defende a necessidade de se “reagregar o social” – rastreando controvérsias sobre as naturezas dos grupos, das ações, dos objetos, dos fatos, e das ciências sociais –, para depois reestabilizá-las conforme a nova metodologia. A sociedade passa a ser vista, então, como a “conseqüência das associações, e não como a sua causa”.


A outra abordagem não toma por certa a doutrina básica da primeira. Ela argumenta que não há nada específico sobre a ordem social; que não existe uma dimensão social de nenhum tipo, nenhum “contexto social” ou nenhum domínio distinto da realidade ao qual o rótulo “social” ou “sociedade” possa ser atribuído; que nenhuma “força social” está disponível para “explicar” as características residuais que outros domínios não conseguem; que os membros sabem muito bem o que estão fazendo mesmo que não articulem suas ações de um modo satisfatório aos observadores; que atores nunca estão incorporados a um contexto social e, portanto, são muito mais que “meros informantes”; que não há, então, nenhum sentido em acrescentar alguns “fatores sociais” a outras especialidades científicas; que a relevância política obtida por meio de uma “ciência da sociedade” não é necessariamente desejável; e que “sociedade”, longe de ser o contexto “no qual” tudo se enquadra, deveria preferencialmente ser construída como um dos muitos elementos de conexão circulando em minúsculos conduítes.


Uma vez que toda associação é sempre o resultado de conjuntos de ações, a noção de performance torna-se central à TAR: grupos são mantidos por meio do esforço de seus vários atores para que suas conexões permaneçam ativas. Não existe uma “cola-social” precedente que faz com que continuem estáveis, caso o fluxo de ligações cesse ou seja interrompido. Assim como defende a cibernética de segunda ordem, estabilidade é uma característica inerente ao sistema, que depende da sua capacidade de se manter em operação.


A natureza performativa, em constante processo de formação e de dissolução, aproxima as associações de Latour do que Deleuze e Guattari definem como rizoma: seu “modelo de realização das multiplicidades”. Formado por agenciamentos, o rizoma se baseia em conexão e em heterogeneidade, “qualquer ponto (...) pode ser conectado a qualquer outro e deve sê-lo, de maneira diversa à árvore ou à raiz que fixam um ponto, uma ordem”. O rizoma possui múltiplas entradas, e pode ter trechos rompidos, sem que isso o impeça de continuar crescendo em outras direções. 


Os agenciamentos rizomáticos provocam multiplicidades a mudar constantemente de natureza, ao se conectarem umas às outras, por meio de linhas de fuga ou de desterritorialização. Fenômeno similar ocorre às entidades que Latour define como mediadores nas associações, que “transformam, traduzem, distorcem e modificam os significado ou os elementos que são encarregados de transportar”; de maneira distinta dos intermediários, que carregam sentido ou força sem transformação: basta o seu input para prever o seu output.


Latour expande a noção de ator social, ou actante, tradicionalmente reservada aos humanos, a entidades não humanas que, segundo o autor, não apenas agem e participam de relações sociais em conexão com atores humanos, como são imprescindíveis para que tais associações ocorram – o que não implica em dotá-los de intencionalidade, ou em defender que objetos ajam em substituição às pessoas. Trata-se, no entanto, de reconhecer que as “coisas” não funcionam somente como um pano de fundo para a ação humana, mas estão diretamente envolvidas nos processos de associação, interagindo com os demais actantes: “tudo aquilo que causa alguma diferença, que modifica o estado prévio das coisas, é um ator”.


Se você consegue afirmar que bater um prego com ou sem um martelo, ferver água com ou sem uma chaleira, fazer compras com ou sem uma cesta, andar na rua com ou sem roupas, (...) são exatamente as mesmas atividades; que a introdução desses implementos mundanos não muda “nada importante” para a realização destas tarefas, então você está pronto para migrar para a “Terra Distante do Social”. Para todos os outros membros da sociedade, existe uma diferença comprovável. Esses implementos, portanto, segundo a nossa definição, são atores, ou mais precisamente, participantes de um curso de ação aguardando uma figuração.


Se por um lado a expansão e a inovação tecnológica – sobretudo por meio das redes digitais de comunicação –, tornam mais visíveis os rastros da participação de dispositivos não humanos na formação de laços sociais, essa função não se restringe apenas a esse tipo de ferramenta. Objetos cotidianos também agem continuamente, por mais que suas ações se tornem “mudas” e deixem de produzir rastros visíveis, devido à natureza rotineira que esses artefatos adquirem. Quando isso ocorre, eles deixam de ser mediadores e se tornam intermediários, permanecendo “silenciosos” até que ocorram situações como panes, acidentes, ou encontros com usuários estranhos ao seu funcionamento, capazes de romper o silêncio, trazendo-os de volta ao papel de mediação. 


Aos conjuntos de atores de diversas naturezas (humanos e não humanos), agregados por associações que os levam a compartilhar uma certa definição de um “mundo comum”, Latour dá o nome coletivo – o qual acredita ser mais adequado aos objetivos da TAR do que a expressão sociedade.


A noção de ator/actante em Latour não se refere à “origem” da ação, mas sim a todo ser ou coisa levado a agir por uma série de forças que o atinge: “um ator, na expressão ator-rede, não é a fonte de uma ação, mas o alvo móvel de um vasto conjunto de entidades convergindo em sua direção”. Nesse sentido, os campos de forças que mobilizam ações se aproximam do que Deleuze define como diagrama:


O diagrama não é mais o arquivo, auditivo ou visual, é o mapa, a cartografia, co-extensiva a todo o campo social. É uma máquina abstrata. Definindo-se por meio de funções e matérias informes, ele ignora toda a distinção de forma entre um conteúdo e uma expressão, entre uma formação discursiva e uma formação não-discursiva. É uma máquina muda e cega, embora seja ela que faça ver e falar.


Ao enunciar as características aproximativas do rizoma, Deleuze e Guattari citam o “Princípio de cartografia e de decalcomania”. Ao contrário do decalques – reproduções de um mundo preexistente –, o mapa, assim como o diagrama, compõe e constrói a realidade. “Ele contribui para a conexão dos campos, para o desbloqueio dos corpos sem órgãos, para sua abertura máxima sobre um plano de consistência. Ele faz parte do rizoma”. Mapas são abertos e conectáveis, desmontáveis, reversíveis; formam “pontos de emergência ou de criatividade”; são performativos e voltados à experiência. 


O que Latour denomina rede tampouco diz respeito a uma estrutura concreta ou abstrata, presente no mundo (como se poderia inferir ao relacionar o conceito com categorias funcionais como redes de esgoto, de transporte, ou de telecomunicações), mas remete aos traços das conexões formadas pelos atores/mediadores. É muito mais ferramenta ou recurso que mobiliza ações, do que trama constituída ou representação formal de organismos estáticos. Aproxima-se da noção Deleuziana de máquina abstrata, dispositivo que ativa agenciamentos no campo social: “a máquina abstrata é como a causa dos agenciamentos concretos que efetuam suas relações; e essas relações de força passam ‘não por cima’, mas pelo próprio tecido dos agenciamentos que produzem”.


O diagrama revela aqui a sua diferença em relação à estrutura, na medida em que as alianças tecem uma rede flexível e transversal, perpendicular à estrutura vertical, definem uma prática, um procedimento ou uma estratégia, distintos de toda a combinatória, e formam um sistema físico instável, em perpétuo desequilíbrio, em vez de um círculo fechado de troca.


A abordagem performativa e dinâmica conferida ao processo de associação dos coletivos modifica, também, as noções tradicionais de micro e de macro domínios. Torna-se impossível utilizar tais parâmetros a partir dos indicadores usuais de escala (macro maior que micro), ou de pertencimento (macro contem micro); fazendo com que seja necessário caracterizá-los por meio da quantidade e da força das suas conexões – o que resulta em uma nova “relação topográfica” entre o “antigo micro e o antigo macro”. “Nenhum lugar domina o bastante para ser global, e nenhum outro é suficientemente auto-centrado para que seja apenas local”. 


Nesse sentido, ao invés de partir de conceitos correntes como “estrutura”, ou como “interação local”, Latour sugere que o “transporte” daquilo que se desloca entre as associações (informação, valores, significados, símbolos, sentimentos, habilidades cognitivas, etc.) seja analisado a partir do termo plug-ins, que toma emprestado do vocabulário da Web. Plug-ins seriam, então, os veículos que carregam esses pequenos pedaços que se unem para compor os atores humanos: “se nós conseguimos comprovar que estâncias glorificadas como o global e local são feitas de ‘entidades circulantes’, por que não postular que subjetividades, justificativas, inconsciente e personalidades também circulem?”. A princípio, a proposta nos leva a imaginar os Plug-ins como controladores deterministas da nossa interioridade, agentes que manipulam nossa liberdade individual, submetendo-nos a indesejáveis imposições externas. Frente a isso, Latour questiona: que outra maneira haveria de produzirmos nossas subjetividades e nossas personalidades, senão por meio de infindáveis associações?


Nesse ponto, autor propõe um debate acerca de dois conceitos centrais ao trabalho aqui proposto, liberdade e emancipação: “o número de ligações não deve ser reduzido para que encontremos, enfim, o santuário do ser. Ao contrário, como William James engenhosamente demonstrou, é multiplicando as conexões com o fora que se criam condições de capturar como o dentro é construído”. Emancipação passa a significar muito mais “bem conectada”, do que “livre de amarras”. 


Para ilustrar o argumento, Latour lança mão do exemplo da marionete e do titereiro. Se à primeira vista o titereiro parece dominar completamente o boneco, o olhar cuidadoso permite enxergar que também os dedos do “manipulador” são conduzidos a movimentos surpreendentes regidos pelo fantoche. O controle não está em nenhuma das extremidades, mas nos fios que conectam uma à outra, de maneira circular. Cortar as cordas não liberta a marionete mas, de maneira oposta, faz com que ela pare de ser mexer. Por outro lado, quanto mais fios forem acrescentados, e quanto mais bem posicionados estiverem, maiores serão o seu número de articulações e a sua liberdade de movimento. Ou, nas palavras de Foerster: “aja sempre de forma a aumentar o número possível de escolhas”.


OBSERVAÇÃO: O TRECHO ABAIXO TODO FARIA PARTE DESSA SEÇÃO, MAS ACHEI QUE FICA MELHOR DEIXAR MAIS PARA A FRENTE, QUANDO A DISCUSSÃO ESTIVER MENOS CONCEITUAL, E MAIS APLICADA. O QUE ACHAM????


A distinção entre o conceito de rede e a noção clássica de comunidade torna-se, portanto, fundamental. Comunidades caracterizam-se, tradicionalmente, por alguma hierarquia, por sentimentos de pertencimento e identidade, pela busca de consonância e pela necessidade constante de se afirmar adesão ao grupo. As redes se articulam de forma mais horizontal e rizomática, orientando-se por um sentido comum, mas não necessariamente pelo consenso ou identificação. Por isso, conseguem abarcar maior diversidade de atores e liberdade de intercâmbio. Nelas, as conexões (fluxos) são mais relevantes do que os nós (pontos), “para a sobrevivência de uma comunidade, o mais importante são as pessoas. Já no caso de uma rede, o mais importante é a informação, de maneira que um projeto baseado em uma comunidade fracassa por problemas relacionais entre as pessoas, enquanto um projeto em rede pode fracassar por falta de transparência ou escassez de informações.”


Marques reflete sobre o potencial das redes sociais e pessoais em processos de mobilidade social. O autor contrapõe os conceitos de bonding e bridging, propostos por Briggs, para ilustrar formas distintas de organização em rede e ilustrar a sua hipótese. De maneira geral, as pessoas possuem uma forte tendência à homofilia, ou seja, uma preferência por manter vínculos com pessoas “parecidas”, formando grupos sociais mais homogêneos, caracterizados pelo conceito de bonding, menos propícios a impulsionar transformações sociais. Em contrapartida, a formação de laços entre indivíduos de grupos sociais heterogêneos criaria “pontes”, bridging, importantes para os processos de mobilidade em questão. 


A ideia de pontes proposta por Marque se assemelha à proposta de redes multiescalares apontada por Rainier Hehl como estratégia de empoderamento do que o autor define como microatores. Segundo Hehl, mais do que a posição original de um ator na micro ou na macro esfera, a capacidade de consolidar laços entre atores de múltiplas escalas e de criar grupos heterogêneos é o que ampliaria as suas possibilidades de atuação e sua conquista de espaço e de visibilidade nos processos em questão.