Espaço comum como resistência positiva
Participamos da construção do catálogo DIÁLOGOS CÊNICOS 2014 com o texto Espaço comum como resistência positiva ao espaço neoliberal:
“Para que a metrópole seja para a multidão o que a fábrica foi para a classe operária industrial, deve ser não somente um lugar de encontro, mas também de organização e política. Esta poderia ser uma definição do conceito grego de polis: o lugar no qual os encontros entre singularidades são organizados politicamente. A grande riqueza da metrópole se manifesta quando o encontro feliz tem como resultado uma nova produção do comum – quando, por exemplo, as pessoas comunicam seus diferentes conhecimentos, suas diferentes capacidades de formar cooperativamente algo novo -. De fato, o encontro feliz na metrópole produz um novo corpo social que é mais capaz do que qualquer dos corpos particulares era solitariamente.” (HARDT e NEGRI, 2009, p.255)
No senso comum, a ideia de espaço público está diretamente relacionada aos espaços não privados das cidades, que são espaços de mobilidade urbana (como calçadas e ruas) ou espaços de lazer e encontro (como praças e parques).
A Wikipédia define espaço público como de uso comum e de posse de todos, configurando na cidade locais de encontros, já que nele, se “desenvolvem atividades coletivas, com convívio e trocas entre os grupos diversos que compõem a heterogênea sociedade urbana”. Este espaço também estaria relacionado diretamente com a formação de uma “cultura agregadora e compartilhada entre os cidadãos”. Mas para dizer que nossos espaços públicos são de uso comum, teríamos que parar e repensar o espaço público em nossas vidas cotidianas na metrópole: como o utilizamos? para quais finalidades? com que frequência? quais são suas condições de permanência? Ou seja, até que ponto estas definições clássicas de espaço público cumprem realmente, no nosso dia-a-dia, todas estas funções que envolvem locais de uso democrático ou de sociabilidade e troca. Além disto, seria necessário também recorrermos às leis de uso do solo, aos planos urbanísticos, aos códigos de postura, aos processos de acessibilidade e mobilidade, ao conjunto de mobiliário, ou melhor, a todo um conjunto de diretrizes que regem este espaço para que possamos verificar se realmente há um uso democrático do espaço. Para avaliarmos se o espaço público no Brasil é democrático ou não, teríamos que acreditar na eficácia do sistema baseado na democracia representativa que elege políticos, partidos e com eles um conjunto de políticas públicas que regem a maneira de funcionar destes territórios.
Também seria interessante repensarmos o conceito de espaço público compreendendo que este espaço não é nem construído nem administrado por toda a sociedade ou pelas pessoas que usam a cidade, mas são criados em instâncias distantes da vida cotidiana dos cidadãos e são regidos pelo Estado. Portanto, falar de espaço público é falar de espaços do Estado e não das pessoas. De alguma maneira, falar de espaço público como espaço do Estado também vem perdendo o sentido desde o momento em que este Estado é regido por partidos e políticos financiados pelo capital. Muitos compromissos são estabelecidos através dos financiamentos privados de campanha e, consequentemente, das empreiteiras e dos bancos, para além, claro, da presença forte de agentes do mercado local. Em tempos de neoliberalismo, regra política econômica que rege a lógica de construção das cidades contemporâneas, percebe-se com muita clareza que as políticas constroem espaços neoliberais, com seus usos e suas lógicas de ocupação e mobilidade determinadas pelo Estado tomado pelo capital. Esta situação é gerada quando os Estados adaptam-se às necessidades do mercado e tornam-se subordinados ao sistema econômico global. Segundo Hardt e Negri (2005), cria-se uma espécie de situação na qual os Estados-nação deixam para trás interesses do trabalho e da sociedade para competir dentro de uma lógica econômica, pois, segundo os autores, o neoliberalismo não é um regime de capital desregulado, mas sim uma forma de regulação do Estado, que facilita o movimento financeiro global e o lucro do capitalismo rentista. Para eles, “na era do neoliberalismo pode ser útil pensar no Estado como o comitê executivo incumbido da tarefa de garantir a longo prazo o bem-estar do capital coletivo” (HARDT e NEGRI, 2005: 354). Mas anterior ao Estado-nação ou ao Estado-capital, sabemos que existiu na história, um espaço compartilhado, fora da lógica do espaço privado, o que poderíamos chamar de espaço comum, que seria o espaço pré-público e pré-privado, espaço de todos e de ninguém, próprio da vida em comum fora da lógica do privado (seja do indivíduo, seja do Estado, seja do mercado).
Atualmente, em tempos de crise do capital global, assistimos ao esforço feroz em privatizar o público nas grandes metrópoles, fazendo surgir assim políticas urbanísticas neoliberalizantes através de uma série de Parcerias Público Privadas em forma de Operações Urbanas Consorciadas (previstas, inclusive, no Estatuto das Cidades). A lógica da cidade-empresa se torna a lógica da construção do espaço público como vetor de geração de mais valia urbana, via constituição de títulos financeiros, que também privatiza a gestão do território via concessões de longo prazo. Esta lógica assola nossas Prefeituras, determinam o uso do espaço dantes público e nos engolem em legislações que conduzem ao uso privado do espaço, indiferenciando o público do privado. De frente para este contexto, teríamos que pensar-criar-imaginar-fazer outros espaços possíveis em forma de resistência. Ativar espaços nem públicos, nem privados, constituindo territórios produtores de espaço comum.
Para imaginar-criar espaços fora das lógicas determinadas entre a dicotomia público x privado, poderíamos pensar o espaço do comum como lugar de produção biopolítica da multidão (nem povo-estado, nem massa-mercado). Espaço no qual, um conjunto difuso de singularidades produzem uma vida comum, organizando corpos sociais que se cruzam num tecido rizomático e desierarquizado, constituindo ações que colaborem para a produção de espaços produtores de novas formas de vida como meta política. Sabemos por experiência própria, que a cooperação e a partilha, o conhecimento livre e a troca produtiva, são capazes de gerar espaços nem público, nem privados, mas espaços nos quais constitui-se um novo mundo de possibilidades democráticas e colaborativas.
As jornadas de junho de 2013 no Brasil abriram uma brecha para a ativação destes espaços em territórios urbanos nos quais o ato de ocupar-juntos para festas, duelos de mcs, praias e carnavais já estavam se constituindo anteriormente. Como os centros das cidades são sempre o foco de todo e qualquer empreendimento neoliberal privatizante e gentrificador, não poderíamos em Belo Horizonte deixar de ter um exemplo claro deste processo, exatamente na região central, onde estas ações artístico-culturais insurgentes acontecem. A Operação Urbana Consorciada Nova BH prevê uma espécie de privatização envolvendo 7 % do território urbano através da manifestação de interesse por parte de empreiteiras que, não por acaso, são empresas que financiam campanhas dos políticos envolvidos na atual gestão. Mas é neste território que estão em disputa espaços nos quais muitas manifestações culturais e políticas acontecem como é o caso de AOcupação que surgiu durante o período de ocupação da Câmara Municipal de Belo Horizonte em junho de 2013 contra o projeto do Corredor Cultural. Esta grande festa que vem ocorrendo quase mensalmente desde que se iniciou, nos oferece uma boa mostra de como é possível ocupar e resistir através da produção estética e afetiva, organizando-se horizontalmente em processos colaborativos. E é neste sentido, através da prática, que podemos citar experiências de construção de espaços comuns através da biopotência da arte, do teatro, da performance, como parte de um conjunto de dispositivos que propiciam redes políticas expansivas, e portanto, se tornam capazes de constituir novos espaços, gerados tanto pelo ativismo, quanto pela produção estética intensiva.
Em tempos de explosão multitudinária, acredita-se ser plenamente possível a existência de novas formas de ocupação espacial emancipatórias, livres da lógica do Estado ou do mercado. Produzir, de muitas maneiras e em diversas configurações, espaços em êxodo, traçando fugas não utópicas, mas heterotópicas, constitutivas de multiplicidades que não sacrificam as singularidades que as compõem. Fora do público e do privado, mas também fora das utopias imaginárias e ideais nas quais os cidadãos viveriam isolados em um não-lugar. Participamos hoje ativamente da constituição de espaços heterotópicos abertos e imanentes, espaços das alteridades, das heterotopias criadas pelas festas, pelo teatro, pelo carnaval, pelas feiras, configurando o que Foucault vai chamar de heterotopias crônicas, heterotopias do tempo, não como tentativas de eternidade, mas sim enquanto heterocronias, coleção de instantes de intensidades.
Acredita-se com Deleuze, que é preciso “acreditar no mundo”, pois isto é o que mais nos falta! Seria preciso suscitar “acontecimentos, mesmo pequenos, que escapem ao controle, ou engendrar novos espaços-tempos, mesmo de superfície ou volumes reduzidos” (DELEUZE, 1992, p.218). Nesta aposta micropolítica de que é possível criar espaços do comum em processos constantes de subjetivação, organizando desejos coletivos para a produção de espaços emancipatórios, encontramos pistas que nos auxiliam a pensar na organização de novas instituições, mais duradouras, como é o caso do Espaço Comum Luiz Estrela, que insurge também de grupos ligados aos processos assembleários em nossa cidade. Neste sentido, vemos a potência da arte hibridada à potencia revolucionária, constituindo desejos em sujeitos políticos via processos coletivos, horizontais e complexos. Em meio aos acontecimentos políticos, a arte produz ao mesmo tempo: a vida, o trabalho vivo, o espaço físico, relações afetivas, potencializando a transformação dos corpos e da cidade. O espaço comum se cruza assim, com territórios de acesso democrático, de uso livre, de troca e de produção de novos modos de vida e de fazer política. Espaços do comum, multitudinários, performativos são criados nos movimentos dos corpos biopotentes, e a arte, enquanto vetor de transformação da vida positiva, se dilui nos gestos da vida cotidiana.
Acredita-se que seja possível sim, imaginar-criar o espaço comum através da arte, redimensionando o público fora da lógica da cidade-empresa do Estado-capital: fazer espaço como se faz amor.
DELEUZE, G. Conversações. Rio de Janeiro: Ed. 34, 1992.
FOUCAULT, M. O corpo utópico, as heterotopias. São Paulo, Editora n-1, 2013.
HARDT, M.; NEGRI, A. Multidão. Rio de Janeiro: Record, 2005.
HARDT, M., NEGRI, T; Commonwealth. El projecto de una revolución del común. Madrid: Akai, 2009.
http://www.dialogoscenicos.com.br
http://issuu.com/noato/docs/dialogos_livreto_versa__o_final?e=1789774/9917817