A metrópole biopolítica e a experiência do comum na cidade
Caderno Pensar Estado de Minas Agosto
A metrópole biopolítica e a experiência do comum como direito à cidade
O capitalismo contemporâneo, também definido como neoliberalismo, marca-se por modos de manipulação do tempo e do espaço urbanos que implicam mutuamente o Estado e o mercado em formas híbridas de governança. A produção, no capitalismo contemporâneo, passa, de forma cada vez mais evidente, do antigo fordismo fabril marcado pela disciplina dos corpos nas fábricas, a um pós-fordismo imaterial, semiótico, calcado na produção e na difusão não de disciplina e gestos mecânicos, mas de linguagens, desejos, modos de vida, serviços, etc. Deste modo, toda a metrópole e seus cidadãos corformam, para o capitalismo hoje, o que a fábrica e os operários outrora foram para os donos dos meios de produção. A cidade em toda sua amplitude é o lugar do qual o capital extrai mais-valia e renda, expropriando e apropriando-se tanto do comum material (terra, ar, água, natureza) quanto do comum imaterial (linguagens, modos de vida e de trabalho) para o seu funcionamento maquínico. Basta observarmos nosso cotidiano para percebermos que cada centímetro do território urbano tem valor no processo de expansão da metrópole. São múlltiplas as formas contemporâneas de consumo neste território: moradia, transporte, produtos, cultura, segurança, arte, espaços verdes, etc.
Neste contexto, observamos alianças entre o poder público e a iniciativa privada para se apropriarem de territórios no sentido de fazer da cidade uma mola para a produção contínua de mais lucro para os investidores. O argumento do qual o Estado lança mão para sustentar tais alianças com frequência baseia-se na expectativa de geração de mais recursos e riquezas, de empregos, e do "embelezamento" da cidade tendo em vista a promoção do turismo. Se em alguma medida isto pode até ser verdade, o que aí não se diz é que, em última instância, os recursos levantados pelos investidores visam ao benefício primeiro dos próprios investidores, e não da população em geral, levando, no mais das vezes, a um processo de gentrificação ou de enobrecimento de grandes áreas. Nesta ciranda, os trabalhadores que outrora eram detentores do próprio negócio ou de casa própria na região escolhida para, digamos, a requalificação ou a revitalização - como em uma operação urbana, por exemplo - serão transformados em empregados ou obrigados a mudar para regiões periféricas da cidade; os empregos gerados serão de menor valor agregado; e os moradores de baixa renda se verão obrigados a mudar para regiões onde consigam pagar aluguel compatível. Por fim, os novos custos com a mobilidade urbana serão novamente motivo para novos empreendimentos e novas parcerias público-privadas. Diante disso, pode-se afirmar que o tal “enobrecimento” de uma região é acompanhado por um movimento de expulsão de grande parte das pessoas que ali moram e/ou trabalham, respaldada pelo discurso da ‘revitalização” e da “requalificação”, como se só houvesse “vida” (ou qualidade espacial) após a morte de um cotidiano, visto como pouco rentável sob a lógica neoliberal. Esse processo é o que se denomina ‘urbanismo biopolítico”, no qual a ‘gentrificação” é condição per se, e o grande capital se torna cada vez mais presente nos meandros de setores políticos e administrativos dos centros urbanos (com, por exemplo, o financiamento privado de campanhas), aumenta sua participação no tecido social da metrópole.
A concentração de renda nos centros urbanos, ao contrário do que frequentemente se apregoa, intensifica-se diante de tais empreendimentos de requalificação e de privatização de territórios. Em grande parte das vezes, as cidades tornam-se menos agradáveis e mais artificiais, perde-se serviços importantes aliados a conhecimentos e práticas tradicionais, e as atividades que estas intervenções incentivam passam a centrar-se na produção e no consumo cada vez menos social e popular.
Outro processo recorrente que atua nessa mesma lógica pode ser percebido na presença de muitos imóveis vazios nos centros urbanos. No caso de Belo Horizonte, mas também de outras cidades, ao andar pela região central vemos milhares de placas de aluga-se e vende-se e encontramos vários quarteirões vazios ou quase vazios. Mas se há tantos imóveis vazios nos centros urbanos, por que o mercado continua construindo mais e mais imóveis, edifícios, condomínios? Com tanto terreno e imóvvel vazio na cidade de Belo Horizonte, não faz sentido tanto investimento em novas construções! Além disto, todos estes grandes projetos acabam por endividar nãoo somente o Estado (com obras de infraestrutura), mas tambémm o cidadão que é levado a investir na compra de imóveis como garantia de uma “vida feliz”, seja para morar (valor de uso), seja para investir (valor de troca). Entretanto, esse processo, produtor de futuras “bolhas imobiliárias”, apesar de ser um fantasma assustador para a maioria de nós, é rentável para um pequeno grupo, o que permite alguns estudiosos afirmarem que o capitalismo neoliberal se sustenta na produção e reprodução do “homem endividado”, uma nova ontologia, com certeza.
Como já mencionado, no capitalismo cognitivo viver e produzir tornaram-se indistinguíveis. Habitar, morar, deslocar e ocupar a cidade são produção de espaço-social e se configuram como processos biopolíticos. A causalidade própria do urbano é o encontro, lugar de trocas e de produção do comum, do fazer-junto, do viver-com. Ao movimentarem plúrimos âmbitos das dimensões de fatos e de trocas humanas, as disputas pelo controle da produção do espaço, como as lutas pelo direito à cidade, configuram-se como um “entre-lugar” que abre brechas para novos signos e postos inovadores de colaboração e de contestação, realinham as fronteiras entre público e privado (possibilidade de constituição de espaço comum), entre tradição e modernidade e enfrentam as expectativas normativas da ideia de progresso (qual é a “cidade” que queremos? quem são os sujeitos da produção do espaço?).
Acontece que, com a velocidade capitalista neste processo de expropriação do que é de todos, assistimos ao surgimento de movimentos sociais, culturais e ambientais com fins de defesa dos espaços urbanos comuns, isto é, espaços em que a vida em comum (não mediada apenas pelo consumo) florescem. Poderíamos pensar que existem dois tipos de comuns produzidos nas metrópoles biopolíticas contemporâneas: um que está envolvido com os processos de produção biopolítica afetiva, criativa, cognitiva, social considerado como “comum artificial” e outro no que diz respeito à preservação e ao incentivo dos bens comuns com foco na natureza urbana, denominados pelos autores como “comum natural”.
E é exatamente nesse ponto que a natureza urbana é um meio para se pensar sobre o que é viver em um ambiente comum e também para se construir políticas urbanas mais democráticas e sustentáveis para as cidades. Em um ambiente urbano predominantemente tomado por construções, avenidas e carros, o verde dos jardins, das praças, dos parques, dos quintais e da arborização das vias, são uma importante resistência do comum na cidade. Essa resistência configura-se quando a arte da jardinagem, das hortas urbanas, do lazer, da contemplação entre outros usos do ambiente urbano, são praticados em harmonia com a natureza e o homem.
A natureza urbana proporciona espaços de lazer e de sociabilidade que podem criar mundos e tecer o acesso ao espaço comum: lugar partilhado, que se move com lógica e tempo próprios para além das pressões econômicas. As áreas livres e a arborização representam também potencial espaço para agricultura urbana e para os jardins comestíveis.
Ao se pensar a natureza nas metrópoles contemporâneas, nós não podemos esquecer a crise hídrica que enfrentamos. Áreas verdes funcionam em conjunto, sustentando os processos naturais e o ciclo da água. Assim, cada árvore, cada praça, cada parque, cada jardim, cada quintal, cada pequena área permeável dentro das edificações é relevante e precisa ser valorizada e protegida. O Projeto de Emenda à Lei Orgânica nº 7/2014 de Belo Horizonte pretendia utilizar 15% da área de praças, parques e reservas ecológicas para a construção de edifícios públicos. A aprovação desta lei permitiria a destruição de mais de 1 milhão de metros quadrados de áreas verdes urbanas, política que estaria na contramão de possíveis soluções para a crise hídrica atual. Neste contexto, a Rede Verde emerge em Belo Horizonte conectando movimentos como Salve a Mata do Planalto ou Criação do Parque Jardim América, contra as propostas de mudança nas regras de ocupação das áreas verdes da cidade. Observa-se, neste contexto, que não faz sentido, por exemplo, a transferência pelo município de lotes públicos para uma empresa denominada PBH Ativos, por meio da Lei nº 10.699, de 10 de janeiro de 2014. Já que a Prefeitura necessita de áreas para construir novos equipamentos públicos, por que doar terrenos para a alienação e, ao mesmo tempo, permitir a ocupação de áreas verdes?
Em 2014, Copenhague foi eleita pela Comissão Européia como a cidade mais verde da Europa (EC, 2012). Ao aproximar e entender como a natureza é desenhada na cidade, percebemos planos e políticas voltadas para uma rede de cemitérios tratados como oásis, casas de cultivo agrícola, escolas de jardinagem e uma comunidade de produção e distribuição de alimentos orgânicos produzidos localmente. A natureza é inserida no cotidiano da cidade de tal forma que atravessa não apenas todas as quadras, assim como as superquadras em Brasília, mas também a vida de seus habitantes. O lazer, o consumo de alimentos, a mobilidade, a socialização estão diretamente conectados e interdependes desta natureza que se infiltra no desenho da cidade e de seus edifícios. A complexidade do desenho da cidade e suas múltiplas variáveis interrelacionadas são reveladas na agenda de Copenhague ao tratar do verde que incorpora a natureza nos planos de transporte local, biodiversidade, uso sustentável de áreas verdes, poluição sonora, manejo do lixo, tratamento de água e esgoto, performance energética, entre outros explicitados nos relatórios enviados à Comissão Européia (EC, 2014).
Parques, praças, jardins, áreas de preservação ambiental são fundamentais para a qualidade ambiental nas metrópoles e garantem vida mais saudável para todos. Além disto, defende-se a importância da multiplicação destes locais coletivos nos quais os cidadãos possam viver parte das suas vidas em espaços de convívio que não sejam necessariamente shoppings, instituições privadas, condomínios fechados, dentre outros.
Entender a importância do verde sob essa ótica permite que a bandeira ecológica seja resgatada de forma efetiva, tendo em vista que há em ação uma forte tendência de transformá-lo em apenas um selo de qualidade cooptado pelos interesses de mercado e esvaziado de política social de fato. Vale, pois, lembrar David Harvey que, no livro Cidades Rebeldes, coloca a seguinte questão, a partir da teoria do sociólogo urbano Robert Park: se a cidade é o mundo que o homem criou, a cidade também é o mundo que o homem está condenado a viver. É a partir desta concepção que o direito a cidade se formula, não devendo ser confundido como um direito estanque, que deve estar garantido pela lei. A luta pelo direito a cidade não é a luta pela norma, mas pela construção democrática, coletiva, comum e cotidiana pela produção do espaço.
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RASCUNHOS
Acredita-se que a metrópole é a nova fábrica e, portanto, é o lugar da produção das forças vivas expropriadas cotidianamente pelo sistema produtivo do capitalismo contemporâneo que atua intensamente na metrópole biopolítica. Expropria-se, tanto a produção em comum, coletiva e criativa, quanto os bens comuns urbanos, mais especificamente os bens comuns naturais (parques, praças e afins).
Acreditando-se que há um imenso depósito de riqueza comum nas metrópoles atuais e que estas riquezas devem ser preservadas, as ações deste grupo tiveram início em fevereiro de 2013, com participação efetiva na teia formada ao redor do movimento Fica Ficus, que surgiu para lutar pela preservação da alameda de ficus numa região importante da cidade de Belo Horizonte. Desde então, muitas conexões entre o grupo de pesquisa e outros grupos e movimentos sociais aconteceram.
Entre 2013 e 2015, com a intensificação dos movimentos multitudinários contra os processos de urbanização neoliberal no Brasil, constituiu-se uma rede de apoio mútuo que vem compartilhando experiências ativistas tanto da Região Metropolitana de Belo Horizonte, quanto movimentos de outras regiões do país e do mundo, como por exemplo, movimento Parque Augusta (São Paulo) ou militantes em defesa do Parque Gezi (Turquia).
Figura 1: Foto de militante da luta em defesa do Parque Gezi na Turquia trocada durante período de intensa atividade tanto no Movimento Fica Ficus quanto no Parque Gezi.
FONTE: Fotos trocadas na fanpage do Fica Ficus no primeiro semestre de 2013.
eu acho que deste textinho aqui podemos roubar umas coisas:
http://blog.indisciplinar.com/espaco-comum-como-resistencia-positiva/
e aqui neste link pro blog do indisciplinar (http://blog.indisciplinar.com/artigos/ ) tem dois textos que tratam da natureza e dos commons urbanos que acho que podem ser aproveitados tambémm: “Viva o comum das resistências verdes multitudinárias! Viva o parque augusta!”. Natacha Rena. “Natureza Urbana e Tecnopolíticas Indisciplinares”. Natacha Rena, Marcelo Maia e Octavio Mendes
texto 01: Metropole Biopolitica:
E neste processo coletivo e colaborativo em defesa dos comuns urbanas, protegendo-os do Estado-capital é que nos últimos anos vemos surgir em Belo Horizonte inúmeros movimentos sociais, culturais e ambientais: Praia da Estação, Fora Lacerda, Fica Ficus, Assembléia Popular Horizontal, Viaduto Ocupado, Parque Jardim Amérrica, Mata do Planalto, dentre muitos outros coletivos que lutam pelo direito à moradia como as Brigadas Populares e/ou o MLB. O surgimento vertiginoso das ocupações urbanas acontece em tempos nos quais se torna insuportável para os pobres o pagamento de aluguéis extorsivos e de ausência de políticas públicas adequadas para moradia para cidadãos que têm baixos salários e não podem se comprometer com a lógica das políticas públicas habitacionais evidentemente desenhadas para enriquecer o mercado imobiliário e os bancos, sem falar nos desvios de recursos para financiamentos de campanha que neste exato momento se mostram com muita clareza via grandes empreiteiras nacionais. Neste sentido, em todo o país, mas na verdade, em todo o mundo, estes movimentos surgem e se conectam globalmente como é tambémm o caso do Parque Augusta em São Paulo, do Ocupe Estelita em Recife, ou do Parque Gezi em Istanbul.