Mudanças entre as edições de "Julia Ávila Franzoni e Thiago Hoshino – Direito à Cidade S/A: a casa de máquinas da financeirização urbana"

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A pesquisadora do Grupo Indisciplinar, advogada popular e professora de Direito Urbanístico, Júlia Ávila Franzoni, apresenta o artigo “Direito à Cidade S/A: a casa de máquinas da financeirização urbana” em parceria com Thiago A. P. Hoshino, associado da [https://terradedireitos.org.br/ Terra de Direitos – Organização de Direitos Humanos], pesquisador do [http://observatoriodasmetropoles.net.br/wp/ INCT Observatório das Metrópoles], doutorando em direito do PPGD/UFPR e professor universitário .
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O artigo, fruto de parceira entre a Rede [http://observatoriodasmetropoles.net.br/wp/ INCT Observatório das Metrópoles] e o [https://diplomatique.org.br/ Le Monde Diplomatique Brasil], faz parte da série “O Direito à Cidade em tempos de crise” e busca compreender o processo de financeirização e empresariamento urbano no atual contexto das grandes cidades brasileiras.
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“A financeirização do espaço é uma prática, ou melhor, uma racionalidade prática associada ao neoliberalismo como “nova razão do mundo”. E, sob os auspícios de um suposto “fim da história”, a única razão advogada como válida, num mundo colonizado pelo mercado. A cartilha, adaptável às diferentes escalas (global, nacional, regional e local), combina um forte discurso legitimador, um arcabouço jurídico-político que lhe confere segurança e dispositivos institucionais garantidores de sua efetividade. A ontologia neoliberal financeira no espaço urbano é assim sumarizável: menos estado, mais instrumentos jurídicos negociais e governança compartilhada (com o mercado). Para combatê-la, no viés do direito à cidade em comum, é necessário, antes de tudo, destrinchar seus modos de operação – incidir na casa de máquinas.
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No nível do discurso, o enredo oficial combina a falência do welfare state com a necessidade de autofinanciamento das políticas públicas urbanas – o velho/novo conto das cidades como global players. E, a isso, no caso das grande cidades, se adicionam fabulações repletas de propaganda pró-legado, os “novos” extrativismos urbanos do turismo, dos megaeventos eventos esportivos, dos grandes negócios e projetos.
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Tripudiando sobre a alardeada “crise” (que é, afinal de contas, permanente no capitalismo), expande-se o domínio intensivo do capital – não só extensivo, visto restarem poucas fronteiras geográficas a sucumbir – inclusive “para dentro de si”, onde a forma urbana ganha evidente centralidade no girar a roda de produção e acumulação de riquezas. O salto qualitativo da tecnologia do capital permite que ele se (des/re)territorialize nas cidades e, entre elas, com maior velocidade e flexibilidade, subjetivando-se num particular modo de vida urbano e determinando as principais formas de organização e consumo da vida e da natureza no contexto da financeirização. Sobra para a inventividade jurídica e institucional a função de resolver o descompasso entre o aparato regulatório e as prementes demandas do capital, redesenhando as relações de produção. Muito do que era o chão de fábrica passa a ser o chão das cidades e, agora, são os próprios espaços e seus sujeitos que se tornam a máquina de extrair mais-valia.
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Tudo isso, não sem resistências. Por trás do mote “cidades para as pessoas, não para o capital” e nele explicitada, uma tensão persiste entre valor-de-uso e valor-de-troca, dois modos de apropriação do espaço urbano cujos portadores invocam, cada um à sua maneira, certo tipo de direito à cidade: o direito de frui-la coletivamente ou o “direito” de explorá-la cumulativamente.
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Essa disputa sobre o próprio sentido e sobre os usos estratégicos do(s) direito(s), da(s) cidade(s) e do direito à cidade atravessa as lutas sociais contemporâneas e as contestações aos retrocessos que assomam no horizonte próximo. À cidade historicamente limitada – Cidade Ltda. – fruto de uma urbanização segregadora, soma-se um conjunto de ameaças legislativas de viés especulativo – Direito® – cujo intuito e marca registrada é a tentativa de transformar o espaço urbano num ativo financeiro sempre mais rentável, a despeito dos custos humanos dessa jogada: o Direito à Cidade S/A.
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Ao longo dos últimos anos, acompanha-se uma confluência perversa entre as promessas populares da redemocratização – tão flagrantes na pulsão das ruas porque ainda não cumpridas – e o protagonismo empreendedor defendido pela agenda neoliberal. O resultado é uma governança seletiva, que compartilha os processos decisórios com os parceiros do mercado e, quando muito, conduz instâncias pro forma de participação social. E o conceito indiscriminado de “sociedade civil”, que no mesmo balaio coloca desde movimentos sociais a empresários, não contribui para dirimir essa confusão, antes a potencializa.
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Uma caricatura do urbanismo neoliberal, a empresa PBH Ativos S/A, ilustra o novo tipo de institucionalidade liminar que desponta. O município de Belo Horizonte, em franco processo de empresariamento, institui uma sociedade anônima para administrar parcerias público-privadas associadas à prestação de serviços e, ainda, para gerir os futuros CEPACs da tão aguardada Operação Urbana Consorciada Antônio Carlos/Leste-Oeste, a primeira no município. Não bastasse o regime jurídico sui generis, a criação da empresa foi viabilizada pela substancial transferência de patrimônio municipal para o ente privado – imóveis, créditos tributários e outras espécies doados como integralização de capital.
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A cidade limitada (Ltda), experimentada pela maioria da população como espaço de exercício desigual de direitos e obstáculos de acesso aos recursos e oportunidades de vida urbana corre o risco de transformar-se, também, na cidade anônima (cidade S/A), onde os bens comuns que deveriam atender às necessidades sociais são titularizados pelos impenetráveis gabinetes empresariais. Quem governa toda essa (des)governança? A queda de braço com essa tomada de assalto do “comum-urbano” vem das ruas, na forma de autogestão para construção da moradias, nas ocupações urbanas, nas assembleias populares que reivindicam soberania sobre os espaços comuns – praças, viadutos, prédios vazios e/ou subutilizados –, nas jornadas de manifestações e protestos que impulsionam mudanças, ainda que provisórias, ainda que heterotópicas, na rota unidirecional da privatização.”
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O artigo pode ser lido na íntegra através do site do [http://diplomatique.org.br/acervo.php?id=3244 Le Monde Diplomatique Brasil].

Edição atual tal como às 12h23min de 23 de abril de 2019

A pesquisadora do Grupo Indisciplinar, advogada popular e professora de Direito Urbanístico, Júlia Ávila Franzoni, apresenta o artigo “Direito à Cidade S/A: a casa de máquinas da financeirização urbana” em parceria com Thiago A. P. Hoshino, associado da Terra de Direitos – Organização de Direitos Humanos, pesquisador do INCT Observatório das Metrópoles, doutorando em direito do PPGD/UFPR e professor universitário .

O artigo, fruto de parceira entre a Rede INCT Observatório das Metrópoles e o Le Monde Diplomatique Brasil, faz parte da série “O Direito à Cidade em tempos de crise” e busca compreender o processo de financeirização e empresariamento urbano no atual contexto das grandes cidades brasileiras.

“A financeirização do espaço é uma prática, ou melhor, uma racionalidade prática associada ao neoliberalismo como “nova razão do mundo”. E, sob os auspícios de um suposto “fim da história”, a única razão advogada como válida, num mundo colonizado pelo mercado. A cartilha, adaptável às diferentes escalas (global, nacional, regional e local), combina um forte discurso legitimador, um arcabouço jurídico-político que lhe confere segurança e dispositivos institucionais garantidores de sua efetividade. A ontologia neoliberal financeira no espaço urbano é assim sumarizável: menos estado, mais instrumentos jurídicos negociais e governança compartilhada (com o mercado). Para combatê-la, no viés do direito à cidade em comum, é necessário, antes de tudo, destrinchar seus modos de operação – incidir na casa de máquinas.

No nível do discurso, o enredo oficial combina a falência do welfare state com a necessidade de autofinanciamento das políticas públicas urbanas – o velho/novo conto das cidades como global players. E, a isso, no caso das grande cidades, se adicionam fabulações repletas de propaganda pró-legado, os “novos” extrativismos urbanos do turismo, dos megaeventos eventos esportivos, dos grandes negócios e projetos.

Tripudiando sobre a alardeada “crise” (que é, afinal de contas, permanente no capitalismo), expande-se o domínio intensivo do capital – não só extensivo, visto restarem poucas fronteiras geográficas a sucumbir – inclusive “para dentro de si”, onde a forma urbana ganha evidente centralidade no girar a roda de produção e acumulação de riquezas. O salto qualitativo da tecnologia do capital permite que ele se (des/re)territorialize nas cidades e, entre elas, com maior velocidade e flexibilidade, subjetivando-se num particular modo de vida urbano e determinando as principais formas de organização e consumo da vida e da natureza no contexto da financeirização. Sobra para a inventividade jurídica e institucional a função de resolver o descompasso entre o aparato regulatório e as prementes demandas do capital, redesenhando as relações de produção. Muito do que era o chão de fábrica passa a ser o chão das cidades e, agora, são os próprios espaços e seus sujeitos que se tornam a máquina de extrair mais-valia.

Tudo isso, não sem resistências. Por trás do mote “cidades para as pessoas, não para o capital” e nele explicitada, uma tensão persiste entre valor-de-uso e valor-de-troca, dois modos de apropriação do espaço urbano cujos portadores invocam, cada um à sua maneira, certo tipo de direito à cidade: o direito de frui-la coletivamente ou o “direito” de explorá-la cumulativamente.

Essa disputa sobre o próprio sentido e sobre os usos estratégicos do(s) direito(s), da(s) cidade(s) e do direito à cidade atravessa as lutas sociais contemporâneas e as contestações aos retrocessos que assomam no horizonte próximo. À cidade historicamente limitada – Cidade Ltda. – fruto de uma urbanização segregadora, soma-se um conjunto de ameaças legislativas de viés especulativo – Direito® – cujo intuito e marca registrada é a tentativa de transformar o espaço urbano num ativo financeiro sempre mais rentável, a despeito dos custos humanos dessa jogada: o Direito à Cidade S/A.

(…)

Ao longo dos últimos anos, acompanha-se uma confluência perversa entre as promessas populares da redemocratização – tão flagrantes na pulsão das ruas porque ainda não cumpridas – e o protagonismo empreendedor defendido pela agenda neoliberal. O resultado é uma governança seletiva, que compartilha os processos decisórios com os parceiros do mercado e, quando muito, conduz instâncias pro forma de participação social. E o conceito indiscriminado de “sociedade civil”, que no mesmo balaio coloca desde movimentos sociais a empresários, não contribui para dirimir essa confusão, antes a potencializa.

Uma caricatura do urbanismo neoliberal, a empresa PBH Ativos S/A, ilustra o novo tipo de institucionalidade liminar que desponta. O município de Belo Horizonte, em franco processo de empresariamento, institui uma sociedade anônima para administrar parcerias público-privadas associadas à prestação de serviços e, ainda, para gerir os futuros CEPACs da tão aguardada Operação Urbana Consorciada Antônio Carlos/Leste-Oeste, a primeira no município. Não bastasse o regime jurídico sui generis, a criação da empresa foi viabilizada pela substancial transferência de patrimônio municipal para o ente privado – imóveis, créditos tributários e outras espécies doados como integralização de capital.

A cidade limitada (Ltda), experimentada pela maioria da população como espaço de exercício desigual de direitos e obstáculos de acesso aos recursos e oportunidades de vida urbana corre o risco de transformar-se, também, na cidade anônima (cidade S/A), onde os bens comuns que deveriam atender às necessidades sociais são titularizados pelos impenetráveis gabinetes empresariais. Quem governa toda essa (des)governança? A queda de braço com essa tomada de assalto do “comum-urbano” vem das ruas, na forma de autogestão para construção da moradias, nas ocupações urbanas, nas assembleias populares que reivindicam soberania sobre os espaços comuns – praças, viadutos, prédios vazios e/ou subutilizados –, nas jornadas de manifestações e protestos que impulsionam mudanças, ainda que provisórias, ainda que heterotópicas, na rota unidirecional da privatização.”

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O artigo pode ser lido na íntegra através do site do Le Monde Diplomatique Brasil.