Processos colaborativos e tecnologia social

De Indisciplinar
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Texto de uma conferência proferida no segundo ENCUENTRO DE INVESTIGACIONES EMERGETENS em outubro de 2012 em Bogotá.


1. NÓS E O IMPÉRIO

Os problemas trazidos pelo crescimento exponencial das metrópoles e pela concentração de renda nas mãos de poucos são evidências de um sistema capitalista que promove a exclusão econômica e social. Por toda parte surgem problemas que vão desde inefeciência no abastecimento de água, de energia, de infraestrutura mínima de mobilidade, saúde, segurança ou educação.

Segundo relatório das Nações Unidas para os Assentamentos Humanos (ONU-Habitat) [1], a América Latina apresenta índices que apontam a diminuição da pobreza, mas o Brasil, contraditoriamente, se torna a sexta maior economia do mundo e o quarto país mais desigual do continente, atrás da Colômbia, que é o terceiro país mais desigual. Este mesmo relatório projeta que a taxa de população urbana chegará a 89% em 2050 e que o índice de urbanização brasileira, além de ser o maior em toda a América Latina entre 1970 e 2010, revela 86,53% da população vivendo nas cidades. Belo Horizonte (a cidade de onde venho) está entre cinco outras cidades brasileiras que posuem a pior distribuição de renda em toda a América Latina. O PIB do país representa 32% do total do PIB do continente, mas seu PIB per capita ocupa a 13ª colocação, abaixo de países como Chile e Argentina. O estudo da ONU-Habitat mostra que o Brasil é apenas a 19ª nação da América Latina em atendimento de saneamento básico. No país, 28% da população mora em comunidades com infraestrutura precária e a grande maioria em situação informal. O índice de moradores de favelas no Brasil é de 26%, ou seja, mais alto do que a média latino-americana. O relatório da ONU-Habitat ressalta também que apesar dos desafios para desenvolver as cidades, a América Latina está prestes a viver um novo ciclo de trasnformação urbana, com objetivo de garantir a melhoria da qualidade de vida nas cidades, mas o grande desafio é a criação de instrumentos para combater as desigualdades nas regiões metropolitanas.

Observa-se que as economias dos países latinoamericanos crescem a reboque de comodditiesao invés de investirem em produção via conhecimento, criatividade e desenvolvimento de tecnologia. Observamos governos falidos, sob legendas de esquerda, investindo em políticas neoliberais explícitas, vendendo, literalmente, ruas, praças, e territórios inteiros para exploração de recursos naturais não renováveis. De forma assustadora, o estado vem concedendo à iniciativa privada o direito de imaginar e construir a cidade à revelia dos desejos populares. Por toda a parte, sob a lógica cultural do capitalismo tardio, o poder público agencia, em parceria com a iniciativa privada, obras espetaculares que irão representar o seu poder e a sua modernidade. As operações Urbanas estão na moda. No Brasil estamos vivendo um momento pré-eventos internacionais como a Copa do Mundo de 2014 ou as Olimpíadas de 2016. Políticas modernizadoras que envolvem a arte, a cultura e a arquitetura vêm sendo implementada para receber turistas e todo tipo de investimento internacional e não para melhorar as condições de vidas dos habitantes. A cidade está sendo, literalmente, vendida para o mercado.

Nós, artistas, designers e arquitetos participamos disto tudo ativamente. Pergunta-se: Estamos indignados com as políticas desenvolvimentistas que excluem grande parte da população de nossos países? Com a constante perseguição aos moradores de rua? Com as intervenções monumentais nas favelas? Com a privatização desmedida dos espaços públicos? Com os aluguéis de praças e parques? Com os processos evidentes de expulsão dos pobres de locais estratégicos para o mercado imobiliário utilizando a arquitetura, o patrimônio, a cultura e o meio ambiente como principal vetor de intervenção em territórios? Como abordamos e atuamos para diminuir as diferenças sociais ampliadas pelos processos generalizados de gentrificação urbana?

O capital está em toda parte e nada acontece fora dele, mas se entendermos que política talvez seja a possibilidade do uso livre do mundo, poderíamos rever o papel da arte, do design e da arquitetura enquanto construção de puros dispositivos de controle ou de publicidade em nossas metrópoles.

Há uma crise evidente de referências na produção cultural contemporânea. O belo saiu dos discursos teóricos oficiais, mas a idéia de monumentalidade, composição, expressividade e autoria faz-se presente em qualquer site ou revista em que se coloque os olhos. Onde estão os pequenos movimentos de resistência?

O capital está em toda parte e constrói seus símbolos. Financia tudo o que nos cerca. Mas onde e como seria possível transgredi-lo? Quais são as formas de militância a serem inventadas? Como agir fora da lógica institucionalizada que envolve um capitalismo perverso e um estado corrupto?

Perguntamos aos artistas, designers, arquitetos e professores: conhecemos e ensinamos sobre o que é produzido ordinariamente na América Latina? O que sabemos sobre os saberes periféricos e marginais das populações amazônicas, ribeirinhas, litorâneas, enfaveladas? Como agenciar movimentos de transculturalização que subvertam a lógica do canibalismo típico presente na produção moderna em nossa cultura? Continuamos entendendo que o modelo de desenvolvimento dos velhos centros irão nos trazer uma riqueza compartilhada e justa? Uma estética singularizante? Uma linguagem própria?

Há um pensamento hegemônico, positivista, desenvolvimentista, neoliberal, social democrata fortemente presente em nossa cultura pós-colonial. Também há um pensamento da antiga esquerda, negativista, pessimista, que ataca frontalmente o capital e solicita uma volta a um estado-nação forte no comando. E há também, uma terceira via, um outro pensamento, fora desta dicotomia direita X esquerda, capitalismo X comunismo, que incentiva um movimento engajado e otimista com relação à formação de um contra-poder imperial. Poder-se-ia chamar esta nova maneira complexa e potente de ver o mundo de Pensamento Político da Diferença.

Indignados com o capitalismo esquizofrênico, mas compreendendo que ele está em toda parte, são muitos os pensadores como Michel Hardt, Toni Negri e Giuseppe Cocco que atuam na esteira da filosofia proposta por Michel Foucault, Gilles Deleuze e Félix Guattari. Pressupõem-se o fim da percepção do mundo a partir de disciplinas isoladas, defendendo um conhecimento produzido coletivamente. Militam por uma atuação potente e contínua baseada na multiplicidade, tornando possível criar mecanismos de vivência e resistência coletiva e colaborativa no interior do capital. Segundo CAVA[2] em sua resenha sobre o último livro da dupla de pensadores Hardt e Negri intitulado Commonwealth:

“Se para os apocalípticos e pessimistas de esquerda, há um buraco negro no horizonte, uma sociedade inteiramente submetida a dispositivos difusos e perversos de controle, para os autores a sociedade contemporânea vaza por todos os lados e é o poder capitalista quem padece de um impasse. Para produzir numa sociedade pós-industrial, o capitalismo precisa conceder liberdade e promover a produtividade imanente à vida. Mas essa mesma liberdade, potencializada pelo desejo, constituída no comum, articulada em multidão, inebriada de amor, pode dispensá-lo – violentamente, se preciso”.[3]

Giuseppe COCCO (2009: 12-13) também salienta o esgotamento do modelo neoliberal, e reafirma a necessidade de aprofundar a batalha contra o liberalismo, sem com isso cair nas tentações de retroceder aos velhos modelos nacional desenvolvimentistas. Em 2009, o autor já apontava para o início do declínio do Império:

“É hora de tomar pelo avesso os debates sobre privatização, fluxos financeiros e culturais mundiais: em vez de continuar a assustar-nos com os improváveis processo de homogeneização, em vez de continuar apostando na desconexão – em uma nova hierarquia nacional que faria oposição à hierarquia global –, é hora de sair em direção aos fluxos horizontais, rizomáticos, de baixo, irredutivelmente heterogêneos, que as reformas neoliberais se esforçaram (em vão) para capturar e controlar – muito mais do que para determinar. Os desafios concretos, os impasses da integração latino-americana, em particular da América do Sul, mostram e confirmam a urgência de uma mudança radical de referencial político e, até, de referencial simbólico.” (COCCO, 2009: 15)

HARDT & NEGRI (2001), inspiradores e inspirados por este novo referencial simbólico de que trata COCCO, advogam a existência de uma ordem mundial, o Império, como “uma nova ordem global, uma nova lógica e estrutura de comando, uma nova forma de supremacia” (p. 11), na qual, num processo intenso de globalização, os Estados-Nação se vêem cada vez com menos poder de regular fluxos de produção e troca. Para eles:

“a transição para o Império surge do crepúsculo da soberania moderna. Em contraste com o imperialismo, o Império não estabelece um centro territorial de poder, nem se baseia em fronteiras ou barreiras fixas. É um aparelho de descentralização e desterritorialização do geral que incorpora gradualmente o mundo inteiro dentro de suas fronteiras abertas e em expansão. O Império administra entidades híbridas, hierarquias flexíveis e permutas plurais por meio de estruturas de comando reguladoras. As distintas cores nacionais do mapa imperialista do mundo se uniram e mesclaram, num arco-íris global (…) O Império com o qual nos deparamos exerce enormes poderes de opressão e destruição, mas isso não deveria, de modo algum, nos deixar saudosos das antigas formas de dominação. A transição para o Império e seus processos de globalização oferece novas possibilidades para as forças de libertação. (…) As forças criadoras da multidão que sustentam o Império são capazes também de construir, independentemente, um Contra-império, uma organização política alternativa de fluxos e intercâmbios globais. Os esforços para contestar e subverter o Império, e para construir uma alternativa real, terão lugar no próprio terreno imperial.” (HARDT & NEGRI, 2001: 12- 15)

Os autores, ao tentarem elucidar as subjetividades que animam esta realidade social, descrevem os processos de biopolítica nos quais o poder do Império atinge a produção da própria vida social, “na qual o econômico, o político e o cultural cada vez mais se sobrepõem e se completam um ao outro” (p. 13), onde o poder aprendeu a controlar a vida por dentro, por dentro dos corpos e cérebros dos cidadãos. Segundo Pelbart:

“o Império é uma das novas estrutura de comando, em tudo pós-moderna, descentralizada e desterritorializada, correspondente à fase atual do capitalismo globalizado. O Império, diferentemente do imperialismo, é sem limites nem fronteiras, em vários sentidos: engloba totalidade do espaço do mundo, apresenta-se como fim dos tempos, isto é, ordem a-histórica, eterna, definitiva, e penetra fundo na vida das populações, nos seus corpos, mentes, inteligência, desejo, afetividade. Totalidade do espaço, do tempo, da subjetividade. Jamais uma ordem política avançou a tal ponto em todas as dimensões, redescobrindo a totalidade da existência humana. No entanto este poder já não se exerce verticalmente, desde cima, de maneira piramidal ou transcendente. Sua lógica em parte inspirada no projeto constitucional americano é mais democrática, horizontal, fluida, esparramada, em rede, entrelaçada no tecido social e a sua heterogeneidade, articulando singularidades étnicas, religiosas, minoritárias. O Império coincide com a sociedade de controle, tal como Deleuze, na esteira de Foucault, o havia tematizado. Em substituição aos dispositivos disciplinares que antes formatavam nossa subjetividade, surgem novas modalidades de controle. Em lugar do espaço esquadrinhado pela família, escola, hospital, manicômio, prisão, fábrica, tão característicos do período moderno e da sociedade disciplinar, a sociedade de controle funciona através de mecanismos de monitoramento mais difusos, flexíveis, móveis, ondulantes, ‘imanente’, incidindo diretamente sobre os corpos e as mentes, prescindindo das mediações institucionais antes necessárias, que de qualquer forma entraram progressivamente em colapso. O novo regime de controle em espaço liso e aberto se exerce através de sistemas de comunicação, redes de informação, atividades de enquadramento, e é como que interiorizado e reativado pelos próprios sujeitos, no que os autores chamam de um estado de alienação autônoma. Através de redes flexíveis, moduláveis e flutuantes, o poder muda de figura, amplia seu alcance, penetração, intensidade, bem como sua capacidade de mobilização.” (PELBART, 2003: 81-82)

Mas há também um movimento de resistência e de produção de novo referencial simbólico que se desloca e reafirma na flexibilidade e na intensidade de suas ações. Assim como o Império penetra em todos os campos da vida, a vida também resiste, positivamente, anterior ao Império. As forças criativas e rizomáticas da Multidão também estão em toda parte e é aqui que se afirma que é possível pensar a arte, a arquitetura e o design como dispositivos de políticas inclusivas, atuando através da indisciplinaridade[4] e da sua capacidade de ativar processos criativos e libertadores. Não num sentido de controle dos movimentos políticos e sociais de resistência, não na intenção de disciplinar os corpos e controlar as vidas, mas ao contrário, no sentido de gerar intensidades transformadores contra as forças perversas do capital contemporâneo. Para professores, pensadores e indutores da produção do conhecimento, criar uma rede não disciplinar, potente de resistência, que supere as dicotomias entre disciplinas, entendendo que o principal objetivo é uma atuação política, é um projeto muito importante. Porque esquadrinhar o mundo em disciplinas faz parte do projeto de dominação e controle do conhecimento e das nossas vidas. Desorganizar as disciplinas e gerar conhecimento e afetos fora das universidades e das instituições capitalistas ou estatais de maneira indisciplinar é também uma possibilidade contra-imperial.

Poderíamomos retomar aqui o conceito de disciplina em Foucault através de Deleuze e Guattari. Entende-se que as disciplinas se voltaram para o indivíduo, e para o seu corpo, para a normalização e adestramento da vida através das diversas instituições modernas que esse indivíduo atravessava em sua existência. O conceito de biopoder que surge com Foucault, veio se juntar às reflexões sobre as práticas disciplinares e às técnicas de exercício de poder a partir do século XVIII. A disciplina seria o diagrama de um poder que atua do no corpo dos homens, manipulando e produzindo seu comportamento e fabricando o tipo de homem necessário ao funcionamento e manutenção da sociedade capitalista industrial. O biopoder envolve a vida como um todo e produz técnicas de poder sobre o biológico. Modificá-lo, transformá-lo, aperfeiçoá-lo eram objetivos do biopoder, assim como a disciplina foi necessária na docilização do corpo produtivo fabril. Este mesmo movimento que capturou a vida transformando-a em objeto máximo das das tecnologias do poder, também a deslocou para o centro das lutas contra esse mesmo poder[5]. A vida se transformou no ponto central das lutas políticas e de resistências. Para HARDT & NEGRI (2001: 42), as sociedades atuais de controle, diferente das disciplinares somente, são aquelas nas quais mecanismos de comando se tornam cada vez mais democráticos, cada vez mais imanentes ao campo social, distribuídos por corpos e cérebros dos cidadãos. Os mecanismos de controle seriam as intensificações das disciplinas, para além dos espaços determinados das instituições em redes flexíveis. A transição da disciplina para o controle, e também a mudança no próprio modo de produção capitalista passa do industrial para o cognitivo e o que está em jogo é a vida e a subjetividade criativa e vital. Sem abandonar as relações de controle disciplinar, assiste-se a uma estrutura social e política que tenta controlar a vida em toda a sua totalidade.


2. EM BUSCA DA INDISCIPLINA

Trazendo a discussão da disciplina, dispositivo do bipoder e do controle da vida e do conhecimento nas sociedades disciplinares a partir do século XVII, que legitimou e organizou as instituições acadêmicas ampliando radicalmente o número de escolas e universidades ao longo do século XIX, para o questionamento do ambiente acadêmico atual no Brasil e em quase todos os países do mundo, podemos perceber que este enquadramento do saber em disciplinas, que, diferente do português, em espanhol significa assignatura, gera um leque de problemas de conduta cotidiana na vida de professores e educadores, que impedem o agenciamento de novas formas pedagógicas e educativas. Há uma exigência nacional que controla as formas de trocar o conhecimento. Necessita-se um enquadramento do conhecimento em disciplinas para que se gerem as grades e matrizes curriculares.

Contraditoriamente, nossas agências de fomento à produção acadêmica que financiamento de pesquisa e extensão no Brasil, via de regra incluem em seus indicadores de avaliação dos Projetos e Programas em editais o indicador da interdisciplinaridade gerando uma esquizofrenia entre os sistemas que compõem o sistema geral do ensino nas universidades brasileiras: relação indissociada entre ensino, pesquisa e extensão. Como os currículos dos cursos, em sua maioria nas universidades brasileiras é organizado em disciplinas estanques, inventa-se formas de relacionar pesquisa e extensão furando o sistema tradicional que é pensado disciplinarmente.

Daí surgem algumas questões de ordem conceitual e política que envolvem projetos de ensino em todas as áreas de conhecimento: Como e para que é importante um saber isolado, íntegro e total? A quem interessa esta divisão do conhecimento em setor, grades, matrizes e categorias? A quem interessa a produção de um conhecimento estanque dentro das escolas e das universidades? A quem interessa um conhecimento taxonômico do mundo e das coisas? A quem interessa a separação entre as disciplinas? E poder-se-ia divagar um pouco mais: Entre natureza e artifício? Entre sujeito e objeto? Entre centro e periferia? Entre espaço mental e espaço vivido? Entre global e local? Entre arte e design? Entre arquitetura e urbanismo?

Sabemos que estas dicotomias nos levam a um grande equívoco próprio do conhecimento acadêmico atual e que é incompatível com a idéia tão difundida da interdisciplinaridade. Pensando nesta situação, sugerimos aqui a Extensão Universitária como o lugar da liberdade e da desierarquização do conhecimento envolvendo o ensino e a pesquisa. Trata-se de pensar estas disciplinas de forma indisciplinar que age simultaneamente dentro e fora dos centros produtores de conhecimento, e que pode adotar um pensamento-ação crítico e de resistência. Isto tudo tem a ver com conhecimento, com potência criativa, com invenção, com política cultural, com política acadêmica, com política pública, com urbanismo, com o direito à cidade. Tudo isto tem relação direta com indignação, com possibilidade do uso livre do mundo. Tudo isto deveria interessar aos artistas, designers, arquitetos e urbanistas. Mais do que difundir a técnica, seria preciso insitar os alunos. técnicos e professores os envolvidos um posicionamento crítico frente ao mundo. Acredita-se que realizar uma atuação militante dentro da universidade exige que se faça um movimento de cruzamento: entre os saberes populares e eruditos, entre os modos de vida da periferia e dos seus técnicos, alunos e professores. Cruzar as fronteiras, territoriais e espaciais, mas também, e principalmente, sociais.

Repensando o ensino que envolve a cultura, a arte, o design, a arquitetura e o urbanismo, teríamos que compreender que são disciplinas indisciplinares que envolvem a vida como um todo e produzem espaços e que estes são políticos e nunca neutros. Entende-se que atualmente tudo é urbano. Entende-se que a produção do espaço urbano é cultural, social, política, econômica, e portanto, indisciplinar por sua natureza híbrida. As antigas cidades fixadas no nosso imaginário como algo delimitado e finito, cercadas por áreas campestres que definem as fronteiras entre o urbano e o rural, não existem mais. Tudo é urbano. Tudo é centro e periferia. Em 91, Saskia Sassen[6] definia o conceito de Cidade Global, afirmando que existem, na verdade, cidades como plataformas de operação de empresas transnacionais, como ponto de encontro de conhecimento e de talentos que fazem a ponte entre atores globais e especificidades locais. Esse status garante, segundo a pensadora, o crescimento, mas cria uma casta de muitos ricos capazes de dominar todo o espaço urbano. Mas como é possível dominar o espaço urbano? Quem gera dispositivos para que ricos dominem o espaço? O estado? O mercado? Nós, artistas, designers, arquitetos e urbanistas colaboramos com esta operação?

Muitos conceitos perversos vêm surgindo no bojo destas discussões sobre a relação entre as disciplinas que envolvem diretamente a criação e as nossas cidades, um deles é o conceito de Cidade Criativa. De maneira geral é um conceito que incentiva o desenvolvimento das cidades dentro de parâmetros capitalistas e isto envolve a transformação da cultura e da produção do espaço dentro de uma visão higienista, organizadora e embelezadora que pressupõe que nossas cidades sejam, em todas as suas camadas, produtivas e comercializáveis. O neoliberalismo que contamina todos os níveis da política no Brasil, por exemplo, propõe projetos e programas de aceleração do crescimento e a cultura é um vetor fundamental que legitima os processos de transformação do espaço comum, dos espaços de todos em espaços controlados e organizados pelo mercado.

Retornando à situação da nova geopolítica internacional, sabe-se que nossos países latinoamericanos vêm saindo da zona de países emergentes e levanta-se uma série de questões: O que precisamos excluir das cidades para incluir identidades forjadas que reforcem o caráter criativo e organizado aos espaços comuns? Como planejar uma cidade criativa? Quais os parâmetros para que o design, a arte e a arquitetura possam potencializar a competitividade entre cidades que desejam ser melhor do que as outras e que investimentos possam ser atraídos para aquele lugar? A retirada das favelas e dos pobres das vistas? A limpeza e a organização das informações? A criação de novos museus e galerias e lojas de design? A criação de excelentes orquestras sinfônicas e corpos de dança clássica? A expulsão dos duelos de MCs e a prisão dos pixaadores e grafitteiros que agora são considerados criminosos no Brasil? Será que a referência do que é melhor para nossos países e para o cidadão, para as cidades e para o campo, para a universidade e para a pesquisa, continua sendo o racionalismo ocidental moderno? O paradigma da aceleração do crescimento? A assepsia urbana?

Os arquitetos, urbanistas, designers e artistas continuarão apenas preocupados com as belas formas e a funcionalidade dos objetos e da cidade? Suas pesquisas continuarão com foco na estética das obras de arte e dos monumentos? Dos processos criativos e seus resultados formais? Somos profissionais que temos atividades neutras fora da discussão ética? Concorda-se então que a arte, o design e a arquitetura estão fora da idéia de política e de construção das cidades, da produção dos espaços?


3. EXTENSÃO UNIVERSITÁRIA E RESISTÊNCIA: ATIVANDO A BIOPOTÊNCIA DO COLETIVO E A RIQUEZA BIOPOLÍTICA DA MULTIDÃO

Acredita-se que dentro das universidades brasileiras e latino-americanas, a extensão é o ponto de resistência! Segundo o Fórum de Pró-reitores de Extensão das Universidades Públicas Brasileiras, a Extensão Universitária, sob o princípio constitucional da indissociabilidade entre ensino, pesquisa e extensão, é um processo educativo, cultural, científico e político que promove a interação transformadora entre universidade e outros setores da sociedade.

Para nós educadores, pensando no ensino e na produção da arte, do design e da arquitetura, é necessária uma introdução de outras formas para lidar com os processos de criação, que possibilitem novos parâmetros produtivos, que promovam a consolidação de um campo expandido para estas disciplinas, para além do tecnicismo e do mercado de produção em massa (tanto da arquitetura quanto do design industrial), para além da geração de obras (de arte autorais para serem legitimadas por instituições via bienais, etc e, consequentemente, comercializadas em galerias de luxo). É muito importante incentivar um desenvolvimento cultural contaminado pelo cotidiano, e que possa existir de uma maneira mais social e política, criando um ambiente para a existência de ações mais engajadas e militantes. Projetos e ações menos estéticas e mais éticas.

Segundo as próprias diretrizes do Plano Nacional de Extensão Universitária brasileiro, a política extensionista universitária vem desenvolvendo um caráter cada vez mais atuante socialmente. Ao longo dos anos, a partir de 1960, as políticas de extensão universitárias brasileiras vêm caminhando do assistencialismo passou-se ao questionamento das ações desenvolvidas pela extensão que começou a ser percebida como um processo que articula o ensino e a pesquisa, organizando e assessorando os movimentos sociais que estavam surgindo. Portanto, a produção do conhecimento, via extensão, se faria na troca de saberes sistematizados entre o acadêmico e o popular, tendo como conseqüência a democratização do conhecimento, a participação efetiva da comunidade na atuação da universidade e uma produção resultante do confronto com a realidade. Neste sentido nos deparamos com a idéia de geração de tecnologia social, que surgiria através deste confronto desierarquizado de saberes.

Acredita-se que a extensão não deve transferir conhecimento da universidade para uma comunidade, mas sim, construir conhecimento coletivamente num ambiente de troca constante. O objetivo essencial do trabalho extensionista é, ou deveria ser, o de estabelecer uma rede de trocas desierarquizada e compreender que todos aprendem e ampliam os seus horizontes ao longo destas experiências. Nestes projetos de extensão que irei apresentar em seguida, a consciência da atuação política é evocada a todo momento para que a construção das tecnologias sociais não aconteça de forma consciente apenas no nível técnico e burocrático, o que é um risco evidente dentro das estruturas acadêmicas.

Mesmo que a pesquisa seja o movimento acadêmico mais valorizado por todos os órgãos de fomento no Brasil e no mundo, a extensão é o lugar da geração de tecnologia social, conceito que surge claramente no sentido de equilibrar, ou iniciar um equilíbrio, entre os incentivos de financiamento de pesquisas científicas (que interessam ao mercado, às indústrias e, portanto, explicitamente, ao capital) e projetos de extensão, que estão interessados em fomentar a produção do conhecimento entre universidade e comunidades em estado de vulnerabilidade social.

Segundo Lassance e Pedreira (2004: 66), tecnologias sociais reaplicáveis podem ser definidas como um “conjunto de técnicas e procedimentos, associados às formas de organização coletiva, que representam soluções para a inclusão social e melhoria da qualidade de vida.” No mesmo sentido, Boaventura de Souza Santos defende a extensão como fundamental:

“numa sociedade cuja quantidade e qualidade de vida assenta em configurações cada vez mais complexas de saberes, a legitimidade da universidade só será cumprida quando as actividades, hoje ditas de extensão, se aprofundarem tanto que desapareçam enquanto tais e passem a ser parte integrante das actividades de investigação e de ensino.” (SANTOS apud SOBRINHO, 2000: 50)

Trata-se aqui da luta contra-hegemônica utilizando os processos extensionistas como ações biopotentes, programas claros e inequívocos, de alianças que são possíveis porque baseiam-se em denominadores comuns, objetivos comuns, e que são mobilizadoras porque produzem uma ação positiva, isto é, porque conferem vantagens específicas a todos os que participam nelas em função do seu grau de participação (SANTOS, 2006: 198). Todos devem ganhar neste processo de troca universidade-comunidade-parceiros, que engloba a generosidade e a solidariedade humana, dentro de um movimento de tradução, invenção e formulação de tecnologia social. Desenvolvendo projetos de extensão, aliados à pesquisas que desloquem e aprimorem constantemente o fazer, é possível gerar, através do encontro de instituições, profissionais e pessoas de realidades sociais e culturais diversas, atos que se dão como biopotência, que resistem aos mecanismos do biopoder estabelecidos pelas relações perversas do capital contemporâneo. Propõem-se aqui ações de extensão como catalizadoras do poder da Multidão.

Para HARDT & NEGRI (2005) o conceito de Multidão é um outro nome pra esta biopotência, é uma alternativa viva que vem se constituindo dentro do Império. Como já foi dito, para estes autores a globalização tem duas faces, uma delas negativa na qual o “Império dissemina em caráter global sua rede de hierarquias e divisões que mantém a ordem através de novos mecanismos de controle e permanente conflito” e a outra que surge na:

“criação de novos circuitos de cooperação e colaboração que se alargam pelas nações e os continentes, facultando uma quantidade infinita de encontros. Esta segunda face da globalização não quer dizer que todos no mundo se tornem iguais; o que ela proporciona é a possibilidade de que, mesmo nos mantendo diferentes, descubramos os pontos comuns que permitam que nos comuniquemos uns com os outros para que possamos agir conjuntamente. Também a multidão pode ser encarada como uma rede: uma rede aberta e em expansão na qual todas as diferenças podem ser expressas livre e igualitariamente, uma rede que proporciona os meios de convergencia para que possamos trabalhar e viver em comum.”(HARDT & NEGRI, 2005: 12)

Acredita-se numa militância criativa, numa outra arte, num outro design, numa outraarquitetura que incorporem os saberes populares e periféricos, em processos de hibridação constante. É preciso compreender que a criação não é um dom especial que faz do designer, do artista ou do arquiteto pessoas em destaque na sociedade. Segundo Pelbart:

“todos e qualquer um inventam, na densidade social da cidade, na conversa, nos costumes, no lazer – novos desejos e novas crenças, novas associações e novas formas de cooperação. (…) Todos e qualquer um, e não apenas os trabalhadores inseridos numa relação assalariada, detêm a força-invenção, cada cérebro-corpo é fonte de valor, cada parte da rede pode tornar-se vetor de valorização e de autovalorização. Assim, o que vem à tona com cada vez maior clareza é a biopotência do coletivo e a riqueza biopolítica da multidão.” (PELBART, 2003: 139)

Pensando especificamente a prática (majoritária no Brasil e no mundo) que envolve o fazer estratégico e planejado do projeto de design ou de arquitetura não atinge o campo social e político necessário para a transformação de nossa realidade. Produz-se para o mercado e através do mercado, lança-se a segundo plano os projetos coletivos e colaborativos (e a arte não está fora deste círculo produtivo).


4. FAZER ARTESANAL E A INTELIGÊNCIA DO HOMEM COMUM

Abre-se aqui uma defesa tanto das ações de extensão, quanto do processo de criação e produção artesanal enquanto formas de resistência à produção mecanizada, alienada e em série industrial. Defende-se o aprender fazendo, aprender fazendo com o outro, coletivamente e colaborativamente. Defende-se uma arte, um design, uma arquitetura que se elabore sem assinatura, sem a forma em evidência, sem o jogo do poder que envolve a sua autoria. Incentiva-se o processo como foco do trabalho, conhecimento na troca desierarquizada, fazer arte, design e arquitetura como se faz política, fazer política e criar espaços livres.

Quando se trata de desenvolvimento de tecnologias sociais que potencializem a relação desierarquizada entre as ongs e universidades e as pessoas envolvidas nos projetos, que moram no território presente nas práticas extensionistas, surge uma grande questão que envolve a criação de objetos, metodologias e ações cotidianas que precisam surgir no encontro entre o fazer-pensar erudito da academia e o fazer-pensar cotidiano experimental das localidades. E é aí que, para a arte, a arquitetura e o design, adquirem potência para ativar formas de fazer que não sejam apenas estratégicas e planejadas, mas que incorporem o fazer tático, próprio de quem não possuí condições financeiras para consumir no mercado. Portanto, não somente os processos de criação colaborativas precisam ser a mola propulsora das ações, destituindo do artista, do arquiteto e do designer a sua tão demandada e necessária produção autoral.

Segundo Richard Sennet, “fazer é pensar (…) o artífice representa uma condição humana especial: a do engajamento.” (SENNET, 2008: 30) Entende-se que, na Universidade, o lugar mais apropriado para “pensar fazendo” é na extensão. Fazer pensando e vice-versa elege ao primeiro plano das ações de transformação e invenção a tática, ao invés da estratégia. Se, para CERTEAU (2003), a estratégia postula um lugar como próprio e constrói uma base para gestão de suas relações com a exterioridade, a tática só tem por lugar o do outro. Ela insinua, fragmentariamente, sem apreendê-lo por inteiro, sem poder retê-lo à distância. Não dispõe de base para capitalizar os seus proveitos. Pelo fato de seu não-lugar, a tática depende do tempo, vigília à espera da oportunidade. Na tática, a arte de dar o golpe é o senso da ocasião. A tática é a arte do fraco e este pode tirar partido de forças que lhe são estranhas. Espera de momentos oportunos onde combina elementos heterogêneos.

Para CERTEAU (2003), há no homem comum e anônimo um homem extremamente inventivo, considerado herói comum, caminhante, inumerável que se difere dos nomes próprios, e produz num ambiente de cultura ordinária onde a ordem é exercida por uma arte de fazer. Há uma economia do dom, uma estética de lances, um estilo de invenções técnicas, uma ética da tenacidade. O autor parte do interesse, não pelos produtos culturais oferecidos no mercado dos bens, mas pelas operações de desvio dos produtos por uma prática inovadora dos seus usuários. Estas seriam maneiras ou modos de fazer diferentes que marcam socialmente o desvio operado em alguns produtos por uma prática, criações anônimas e perecíveis que surgem instantaneamente e não se capitalizam. Há nestas práticas uma inversão de perspectiva que desloca a atenção do consumo supostamente passivo dos produtos para a criação anônima que nasce da prática do desvio no uso destes e via de regra, a produção artesanal, não autoral, baseadas numa prática auto-construtiva, regem o movimento da invenção.

“Habitar, circular, falar, ler, ir às compras ou cozinhar, todas essas atividades parecem corresponder às características das astúcias e das surpresas táticas: gestos hábeis do ‘fraco’ na ordem estabelecida pelo ‘forte’, arte de dar golpes no campo do outro, astúcia de caçadores, mobilidades nas manobras, operações polimórficas, achados alegres, poéticos e bélicos.”(CERTEAU, 2003: 13)

O que interessa a este autor são as operações e os usos individuais, suas ligações e as trajetórias variáveis dos praticantes que manipulam materiais e produtos a partir da bricolagem e da inventividade artesanal e local. Seguindo a trilha deixada por Michel Foucault, CERTEAU vê nos dispositivos inventados uma vampirização das instituições que reorganizam clandestinamente o funcionamento do poder, ou seja, uma atuação microfísica do poder. O autor detecta, já nos anos 60, a importância de pesquisas destes outros modos de utilizar produtos consumidos de forma subversiva e curto-circuitam as encenações institucionais.

“A uma produção racionalizada, expansionista além de centralizada, barulhenta e espetacular, corresponde outra produção qualificada de ‘consumo’: esta é austuciosa, é dispersa, mas ao mesmo tempo ela se insinua ubiquamente, silenciosa e quase invisível, pois não se faz notar com produtos impostos por uma ordem econômica dominante.” (CERTEAU, 2003: 39)

Poderíamos pensar que o que interessa em todas as frentes dentro e fora da universidade, são os movimentos de micro-resistências, que fundam as micro-liberdades e deslocam as fronteiras das relações hierárquicas de poder sobre a Multidão. Em seguida irei apresentar dois Programas de Extensão realizados em Belo Horizonte, Minas Gerais, Brasil. O ASAS _ ARTESANATO SOLIDÁRIO NO AGLOMERADO DA SERRA, criei e coordenei entre 2007 e julho de 2012 e o outro, PROGRAMA DESEJA.CA_DESENVOLVIMENTO SSUSTENTÁVEL E EMPREENDEDORISMO SOCIAL NO JARDIM CANADÁ coordeno junto à Professora Juliana Torres e à diretora do JA.CA, Francisca Caporalli.



[1] Informações estraídas do G1: http://g1.globo.com/brasil/noticia/2012/08/brasil-avanca-mas-e-quarto-pais-mais-desigual-da-america-latina-diz-onu.html

[2] CAVA, B. Amor e pós-capitalismo no site OUTRAS PALAVRAS. http://www.outraspalavras.net/2010/06/22/commonwealth-amor-e-pos-capitalismo/

[3] http://www.quadradodosloucos.com.br/215/resenha-commonwealth-antonio-negri-e-michael-hardt-2009-harvard-press/

[4] Esta idéia de imaginar uma categoria de trabalho INDISCIPLINAR surgiu durante longas conversas com o arquitetos Antonio Yemail em visita à Universidade Javeriana de Bogotá na Colômbia em novembro de 2011.

[5] Referência: dissertação de mestrado de Carlos Roberto Calenti Trindade de nomeRELAÇÕES DE PODER E PRODUÇÃO DE SUBJETIVIDADE NAS MÍDIAS COLABORATIVAS: Um estudo do site overmundo.

[6] Em entrevista a Fernando Dantas e Carlos Machi no dia 03 de agosto de 2008, Estadão, Megacidades, Grandes reportagens. (http://www.estadao.com.br/megacidades/entrevista_saskia.shtm)