Mudanças entre as edições de "Cartografia"

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A cartografia e a relação pesquisa e vida
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Roberta Carvalho Romagnoli
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Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, Belo Horizonte, Brasil
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[Psicol. Soc. vol.21 no.2 Florianópolis maio/ago. 2009
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doi: 10.1590/S0102-71822009000200003
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http://www.scielo.br/scielo.php?pid=S0102-71822009000200003&script=sci_arttext]
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O Paradigma Moderno e a Psicologia
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As ciências surgem no Ocidente, favorecendo a migração do polo religião, central nas sociedades tradicionais, para o polo razão, sustentáculo da chamada Modernidade. Nesse deslocamento, a ciência, criada pelo homem, determinista, matematizada e fundamentada em leis, apropria-se do lugar central da sociedade, ocupado por Deus, uma vez que os fenômenos naturais e sociais eram apreendidos, até então, por explicações divinas. Baseada em esquemas de eficácia e rendimento, conquista um espaço absoluto, impondo-se como força hegemônica na cultura ocidental moderna, relegando ao descrédito e ao esquecimento todos os outros saberes que não estão em consonância com seus pressupostos básicos, a saber: objetividade, causalidade, sistematização e produtividade. Permite, assim, um avanço progressivo da ação do homem sobre a natureza, proporcionado pela primazia da razão.
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Vale lembrar que, conforme Veiga-Neto (2002), o paradigma da ciência moderna encontra-se calcado na razão, na consciência, no sujeito soberano, no progresso e na totalidade do mundo 1. Nesse sentido, notamos inicialmente uma grande ascensão das ciências exatas e naturais, que estavam de acordo com os pressupostos desse momento histórico, pois é nelas que se encontra a possibilidade de fundamentação das evidências mate máticas, base sobre a qual se desenvolverá o pensamento tecnológico e manipulativo. Nessa proposta iluminista, o formalismo metodológico sustenta-se na neutralidade/objetividade, com forte mitificação da racionalidade. E o homem torna-se um ser basicamente racional, que usa sua capacidade unida a uma cuidadosa observação do mundo exterior, para a produção de conhecimento científico e o consequente domínio da natureza, tendo como meta abordar a natureza essencial das "coisas", a partir da noção de verdade.
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No seu surgimento, as Ciências Humanas se inserem no contexto da época, altamente positivista. Sua ascensão foi marcada pela abordagem empírica, traduzida por meio de experimentos, com o intuito de compreender a realidade. A Psicologia se torna ciência aliada às Ciências Naturais, no final do século XIX, produzindo conhecimento através do método experimental, que tem na objetividade, na quantificação e na generalização os sustentáculos da pesquisa. Para esse método, as leis da natureza são o reino da simplicidade e da regularidade, onde é possível observar e medir com rigor, na crença de que as Ciências Humanas têm que imitar as Ciências Naturais. Ou seja, essa perspectiva defende que é preciso estudar os fenômenos sociais como se fossem naturais. Nesse sentido, é científico o quantitativo que permite o manejo pragmático dos fatos, inserido em um mundo objetivo e determinista. torna-se necessário, então, basear-se na utilização dos termos matemáticos para a compreensão da realidade e apropriação da linguagem de variáveis para especificar atributos e qualidades do objeto de investigação, em busca da generalidade e da regularidade dos fatos (Chizzotti, 1998).
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Até a 2ª metade do séc. XX, a pesquisa experimental e seu método constituíam o padrão de produção de conhecimento científico, inclusive para a própria Psicologia. A partir dessa época, no entanto, paralela à vertente positivista, base desse tipo de pesquisa, surge um movimento filosófico, que sustenta a visão de mundo existencial, em que a vivência e a percepção que o ser humano tem de suas experiências torna-se essencial. O conhecimento científico se alia, dessa maneira, ao método fenomenológico como recurso para se investigar a vivência do sujeito através da consciência, em associação com o Existencialismo, que propaga a subjetividade e a atribuição de significados como a verdadeira essência da existência. Essa leitura inaugura uma mudança radical da investigação científica e insiste no homem que tem consciência de sua própria vida e da dos seres com quem se relaciona, como peça fundamental do trabalho investigativo, enfatizando não o que existe na realidade em si, mas a realidade a partir da sua existência para a consciência (Forghieri, 1993).
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Inaugura-se a era das pesquisas qualitativas, e não somente quantitativas, que visam ao aprofundamento no mundo dos significados das ações e das relações humanas. Surge nesse momento histórico a distinção entre pesquisa quantitativa e pesquisa qualitativa (Smith, 1994). Guardadas as devidas diferenças entre métodos distintos, a pesquisa qualitativa persegue o mundo social através das interpretações dos fenômenos, buscando as vivências, as experiências e a cotidianidade. Sendo assim, a análise social deve ser realizada através da compreensão da dinâmica das relações sociais que são depositárias de crenças, valores, atitudes e hábitos, como propaga a Fenomenologia, ou da luta de classes, como defende a Dialética, que veremos adiante. É necessário ressaltar que não existe apenas uma forma de pesquisar. Tanto a pesquisa quantitativa quanto a pesquisa qualitativa podem oferecer importantes recursos para as Ciências Humanas, dependendo da temática a ser estudada e do objetivo proposto. Todas as duas correntes possuem suas aplicações, suas utilidades e suas limitações.
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Retornando à pesquisa em Psicologia, observamos ainda forte influência da Dialética, que tenta fazer um desempate entre os métodos citados anteriormente, propondo-se a abarcar o conhecimento como fruto das relações sociais, visando encontrar na parte a relação com o todo, indo ao encalço da interioridade e da exterioridade como constitutivas dos fenômenos. Desses princípios deriva que, para se conhecer realmente uma realidade, é necessário estudá-la em todos os seus aspectos, relações e conexões, pois tudo está em constante transformação e correlação, partindo-se da premissa de que, no objeto de estudo, está sempre presente algo que nasce, se desenvolve, se contradiz. Com forte crítica à neutralidade científica, surge a pesquisa-ação, também chamada de pesquisa participante, enfatizando o envolvimento do pesquisador com seu objeto de estudo, pois a pesquisa passa a ser também um fator de transformação social 2.
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A abordagem dialética se propõe a abarcar, ao mesmo tempo, o sistema de relações do mundo que nos rodeia, como modo de conhecimento exterior ao sujeito, pois acredita que é a matéria que origina a consciência; e também as representações sociais que traduzem o significado deste mundo. Nesse sentido, coloca-se como uma terceira alternativa frente ao método experimental e ao método fenomenológico, acreditando que o quantitativo e o qualitativo caminham lado a lado, pensando a relação da quantidade como uma das qualidades dos fatos e fenômenos. todo fenômeno ou processo social deve ser entendido nas suas determinações e transformações dadas pelos sujeitos, mediante uma relação intrínseca de oposição e complementaridade entre mundo natural e social, entre pensamento e base material. Dessa maneira, a cientificidade está associada à complexidade da natureza e das culturas, e o conhecimento sempre vem associado à práxis, pois a lógica do pensamento está vinculada aos processos históricos das mudanças, dos conflitos sociais e suas contradições. De acordo com Haguette (1987), esse tipo de pesquisa faz uma proposta de união entre o saber acadêmico - conquista do conhecimento - e a práxis - transformação através da ação -, visando à mobilização e à tomada de consciência. Valoriza ainda a contradição dinâmica do fato observado e a atividade criadora do sujeito que observa, as oposições contraditórias entre o todo e a parte e os vínculos do saber e do agir com a vida social dos homens.
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Embora revolucionárias em relação às pesquisas quantitativas e experimentais, a pesquisa fenomenológica e a pesquisa-ação, fundamentadas na fenomenologia e na dialética, respectivamente, se amparam ainda no paradigma moderno que concebe o método científico como um instrumento, por excelência, de explicitação das verdades do mundo, guardadas as devidas diferenças epistemológicas. Para alcançar esse patamar, é necessário transitar por um campo teórico estabelecido e legitimado e realizar estudos coerentes com o estatuto de cientificidade. Nessa articulação, produção de conhecimento versus realidade, a teoria é aplicada ao objeto de estudo de forma interpretativa, sustentando um conhecimento que é, em si, reducionista e homogeneizante, com a pretensão de compreensão plena dessa relação. Ou seja, o paradigma moderno parte do pressuposto de que a teoria é separada do objeto e de que não são, de fato, indissociáveis. Além disso, presume que a realidade deva estar em consonância com a teoria, sendo passível de ser interpretada pela perspectiva teórica escolhida pelo pesquisador. Além da teoria, no paradigma moderno, a pesquisa se funda em procedimentos metodológicos que permitem certo domínio do objeto de estudo.
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Em Psicologia, lidamos com uma variedade de metodologias e técnicas que se mesclam conforme a necessidade e a viabilidade do trabalho proposto. Cabe ao pesquisador a sua seleção, para executar seu estudo e elucidar os princípios que regem a compreensão das questões levantadas por ele. Tudo isso conduzindo a uma sistematização do material, trilhando caminhos para a viabilização do trabalho acadêmico e outorgando cientificidade ao processo.
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É necessário pontuar que cada método possui sua explicação do que ocorre entre sujeito e objeto. O método experimental parte do pressuposto de que essa articulação é mediada por relações ordenadas entre fatos observados empiricamente. O objeto é exterior ao sujeito - nessa interação são as consequências do comportamento sobre o ambiente e como essas incidem no organismo que possibilitam uma análise funcional das contingências, passíveis de serem mensuradas quantitativamente. A partir de critérios de objetividade científica, pode-se estudar o comportamento que é observável publicamente (Vicentini, 2001). O método fenomenológico, por sua vez, busca nessa relação a consciência que daí emerge, através dos significados que o sujeito atribui ao objeto. Essa relação não tem a ver somente com a objetividade, mas, sobretudo com a inscrição do objeto na consciência e sua experienciação (Amatuzzi, 2006). Por outro lado, o método dialético tem como objetivo abranger a articulação entre o diaa-dia de determinado grupo social, de certo objeto de estudo, com o sistema de ideias e representações que o constitui e que deriva na alienação, no desconhecimento do sujeito dos processos que ele está vivendo em seu cotidiano, da desigualdade do sistema social. Ou seja, na relação dinâmica entre sujeito e objeto, deve-se observar a prática social intrínseca e sempre contraditória e conflitiva, portadora de dimensões históricas e ideológicas (Paulon, 2005).
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Nessas abordagens, o método científico é um instrumento para a explicitação da verdade, embasado, como vimos, na conexão assídua entre teoria e procedimentos metodológicos. E a racionalidade, mesmo que seja objeto de grande questionamento nas Ciências Humanas, a garantia de seu alcance.
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O Paradigma Emergente e a Cartografia
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Durante muito tempo, essas perspectivas epistemológicas sustentaram o conhecimento em Psicologia no Brasil (Kahhale, 2002). todavia, hoje, a própria ciência está em crise. De acordo com Santos (2002), "Estamos no fim de um ciclo de hegemonia de certa ordem científica. As condições epistêmicas das nossas perguntas estão inscritas no avesso dos conceitos que utilizamos para lhes dar resposta" (p. 9). Ou seja, passase a considerar que a teoria não transcende a realidade e nem está dissociada da prática, também fazendo parte do processo de construção histórica da realidade. Com o grande avanço científico moderno e sua enorme e importante produção, tornou-se evidente a fragilidade de suas ferramentas para abranger o que ocorre, de fato, na vida. Dessa maneira, nos deparamos com a complexidade da realidade, e também da subjetividade, opondo-se frontalmente a um conhecimento que se impõe como verdade, generalizante e simplificado, e que tem como objetivo alcançar a previsibilidade a partir de um espaço inteligível de certezas (Morin, 1996). De acordo com Veiga-Neto (2002), vivemos hoje a emergência de um pensamento pós-moderno que visa a um questionamento contínuo das ações com análise crítica. Esse pensamento possui como características: a humildade epistemológica, ao não perseguir a verdade; a busca de ferramentas úteis para o entendimento do mundo e o abandono da ideia de um lugar privilegiado a partir do qual podemos compreender definitivamente as relações que nos circundam.
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Nesse sentido, Morin (1983) faz uma crítica ao paradigma moderno, chamando-o de paradigma da simplificação. Nesse viés hegemônico da ciência, há, de fato, um primado da disjunção e da redução, para embasar uma visão da realidade ordenada e simplificada, operando através de reducionismos que visam eliminar o problema da complexidade. Para tal, há uma insistência no estudo dos fenômenos isolados e dissociados.adisjunção separa o objeto do meio, o físico, do biológico, o biológico, do humano, divide o que vai ser estudado em categorias e disciplinas, operando pelo estabelecimento de elementos não-ligados. Ocorrem, por outro lado, a redução do humano ao biológico, do biológico ao físico-químico, do complexo ao simples, com o que se chega a uma unificação abstrata que anula a diversidade.
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Em contrapartida, vem à tona um conhecimento não dualista, que não faz a separação entre natureza/ cultura, objetivo/subjetivo, quantitativo/qualitativo. Além disso, insiste na produção de um conhecimento local e transitório que reconhece a necessidade de uma plurali dade metodológica, pois "Cada método é uma linguagem, e a realidade responde na língua em que foi perguntada" (Santos, 2002, p. 48), destacando-se a operação reducio nista que daí deriva. Pretende-se, nessa fase de transição da ciência, driblar as certezas e os reducionismos, em uma tentativa de apreender a complexidade que, de fato, faz parte de todo e qualquer objeto de estudo.
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Além da ênfase na complexidade, vivemos hoje vários impasses no campo da Psicologia, a saber: a ampliação dos campos de trabalho, o convite à promoção de saúde, o questionamento dos efeitos de nossas práticas na gerência cada vez maior da vida, dentre outros. tudo isso, no nosso entender, nos impele a produzir dispositivos singulares que não estejam a serviço da serialização instituída, seja no campo da produção de conhecimento, seja no campo da intervenção. E aponta para uma lacuna entre nossa formação, ainda efetuada nos moldes iluministas, calcada na premissa de que a razão tem como atividade principal iluminar o homem, e a realidade que os psicólogos irão enfrentar ao sair da academia. No nosso entender, a formação dominante favorece um despreparo para enfrentar as profundas mudanças culturais, sociais e subjetivas em que nos encontramos. Observamos que, cada vez mais, o psicólogo é convocado a intervir na complexidade, em campos de atuação em que os "especialismos" de nossas áreas e sua tradicional divisão, em área da saúde, da educação, do trabalho e da comunidade, não se sustentam no cotidiano. Como exemplo desses novos campos de atuação, temos as ONGs, o PSF, o CRAS, dentre outros.
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A crise da ciência, aliada ao momento atual da nossa profissão, nos leva a defender a não separação da Psicologia em áreas e nem em polarizações antagônicas, com o intuito de driblar as dicotomias e insistir na transdisciplinaridade. Passos e Benevides de Barros (2000) discutem o desafio de se pensar a clínica nessa perspectiva, rastreando o que ela tem de potência de criação. Não se restringindo a esse campo, acreditamos que esse processo possa e deva estar presente em toda a Psicologia, que ainda mantém as dicotomias sujeito-objeto, teoria-prática e insiste em fronteiras rígidas na definição das disciplinas, de seus métodos e objetos de pesquisa. Segundo os referidos autores, a transdisciplinaridade busca exatamente a perda da identidade de cada teoria, de cada prática, para ocorrer algo no "entre", a partir da desestabilização das "certezas" de cada disciplina, apostando ainda na criação de uma relação de intercessão com outros saberes/poderes/disciplinas, pois é nesse "entre" que a invenção acontece, como nos chama a atenção Benevides de Barros (2005). E toda essa processualidade exige da academia uma produção de conhecimento que fundamente a fase de transição em que nossa profissão se encontra, pois, como vimos, estamos no fim de certa ordem científica. Nesse sentido, acreditamos que as pesquisas baseadas no paradigma moderno, que se fundamentam em cisões e dicotomias, não contribuem efetivamente para os desafios que precisamos enfrentar. Sem dúvida, houve uma época em que a produção de conhecimento deveria se atrelar ao paradigma moderno. Entretanto, a contemporaneidade e a Psicologia atual nos instigam a buscar outros modos de conhecer.
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Para tentar apreender, mesmo que transitoriamente, a processualidade que a transdisciplinaridade propaga, pode-se trabalhar com a cartografia, método proposto por Deleuze e Guattari, utilizado em pesquisas de campo voltadas para o estudo da subjetividade (Kastrup, 2007; Kirst, Giacomel, Ribeiro, Costa, & andreoli, 2003). A cartografia se apresenta como valiosa ferramenta de investigação, exatamente para abarcar a complexidade, zona de indeterminação que a acompanha, colocando problemas, investigando o coletivo de forças em cada situação, esforçando-se para não se curvar aos dogmas reducionistas. Contudo, mais do que procedimentos metodológicos delimitados, a cartografia é um modo de conceber a pesquisa e o encontro do pesquisador com seu campo. Entendemos que a cartografia pode ser compreendida como método, como outra possibilidade de conhecer, não como sinônimo de disciplina intelectual, de defesa da racionalidade ou de rigor sistemático para se dizer o que é ou não ciência, como propaga o paradigma moderno. Cabe salientar que, não raro, a ideia de método é atrelada à de metodologia que, por sua vez, trata do formalismo e das prescrições para se alcançar a cientificidade, explicitando os procedimentos que já estariam consolidados dentro da ciência. Dessa maneira, a metodologia corresponde aos instrumentos para se fazer ciência, centrando-se no "como" fazer ciência, traduzindo o caminho do pensamento e a prática exercida na abordagem da realidade. também não é essa a proposta. Retornando ao conceito de método, aqui o utilizamos no sentido atribuído por Drawin (2001), em que método corresponderia a um caminho levado a um fim, associado a uma "reivindicação de um trabalho, de um renovado esforço, o que não seria necessário se já se possuísse uma fórmula prefixada, e se o caminho para o conhecimento já houvesse sido conquistado" (p.10). Nessa perspectiva, o método é uma nova proposta para reencontrar o saber que se encontra em crise. Nesse sentido, a cartografia é um método, pois não parte de um modelo pré-estabelecido, mas indaga o objeto de estudo a partir de uma fundamentação própria, afirmando uma diferença, em uma tentativa de reencontrar o conhecimento diante da complexidade.
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A cartografia, como portadora de certa concepção de mundo e de subjetividade, a serem apresentados abaixo, traz um novo patamar de problematização, contribuindo para a articulação de um conjunto de saberes, inclusive outros que não apenas o científico, e favorecen do a revisão de concepções hegemônicas e dicotômicas. Nessa proposta, o papel do pesquisador é central, uma vez que a produção de conhecimento se dá a partir das percepções, sensações e afetos vividos no encontro com seu campo, seu estudo, que não é neutro, nem isento de interferências e, tampouco, é centrado nos significados atribuídos por ele. É isso o que leva Mairesse (2003) a dizer que a cartografia acontece como um dispositivo, pois, no encontro do pesquisador com seu "objeto", diversas forças estão presentes, fazendo com que ambos não sejam mais aquilo que eram. Nesse sentido, o método cartográfico "desencadeia um processo de desterritorialização no campo da ciência, para inaugurar uma nova forma de produzir o conhecimento, um modo que envolve a criação, a arte, a implicação do autor, artista, pesquisador, cartógrafo" (Mairesse, 2003, p. 259).
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A cartografia parte ainda de outra leitura da realidade, pois não quer só buscar o qualitativo, mas também romper com a separação sujeito e objeto 3. Em contraposição a uma forma de pensar dicotômica, essa vertente convoca a imanência, a exterioridade das forças que atuam na realidade, buscando conexões, abrindo-se para o que afeta a subjetividade. Esta última deve ser pensada como um sistema complexo e heterogêneo, constituído não só pelo sujeito, mas também pelas relações que ele estabelece. Essas relações denunciam a exterioridade de forças que incidem tanto sobre o pesquisador quanto sobre o objeto de estudo, e atuam rizomaticamente, de uma maneira transversal, ligando processualmente a subjetividade a situações, ao coletivo, ao heterogêneo. a subjetividade é constituída por múltiplas linhas e planos de forças que atuam ao mesmo tempo: linhas duras, que detêm a divisão binária de sexo, profissão, camada social, e que sempre classificam, sobrecodificam os sujeitos; e linhas flexíveis, que possibilitam o afetamento da subjetividade e criam zonas de indeterminação, permitindo-lhe agenciar. Esse afetamento da subjetividade pelo que não é ela, pelas relações efetuadas, pela intersecção com o "fora", forma um agenciamento. Quando isso ocorre, linhas de fuga são construídas, convergindo em processos que trazem o novo. Esses processos são sempre coletivos, conectando-se ao que está aquém e além do sujeito e construindo novos territórios existenciais (Deleuze & Parnet, 1998).
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Na leitura esquizoanalítica, essa é a dinâmica dos processos de subjetivação 4. Os deslocamentos da subjetividade se dão a partir do "fora", portador de forças estranhas que pedem uma decifração ao desestabilizar o território existencial conhecido. Essas forças, quando entram em contato com a subjetividade, aumentam a impressão de estranheza do mundo e conduzem a rupturas de sentido. De acordo com Rolnik (1999), as rupturas de sentido ocorrem quando a subjetividade é lançada na processualidade da vida e se vê forçada a trilhar novos caminhos via agenciamentos maquínicos, produtivos, a habitar novas formas de viver. Esse é o movimento próprio da vida, da criação. As linhas da subjetividade compõem o território existencial, o modo de existência de cada um de nós, e também possibilitam que se exerça a invenção.
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Esse raciocínio aborda a realidade através de superfícies, de planos simultâneos que coexistem sem hierarquia nem determinação. O plano de organização corresponde ao que está instituído socialmente de forma molar, ordenando o mundo e a subjetividade em segmentos, estratos, de maneira dicotômica e dissociativa, codificando-a, registrando-a em processos classificatórios, via operações de transcendência, que formam estratos, segmentos que homogeneizam os fluxos da vida. Nessa superfície, os fluxos são presos a códigos, e cada termo ganha sentido opondo-se a outro. Por outro lado, o plano de consistência é o plano invisível de expansão da vida, composto pelas forças moleculares e invisíveis que atravessam o campo social. É nesse plano que se dão os encontros e os agenciamentos que vão gerar novos sentidos, novas formas de expressão e promover a resistência ao que tende a se reproduzir no plano de organização. Nessa superfície não há oposição, mas os fluxos se encontram em uma variação contínua de intensidades. Esses dois planos se apoiam no plano de imanência, que dá suporte às relações entre as forças componentes da realidade, molares e moleculares, compondo o "meio" em que tudo se dá - dimensão de fluxos, segmentos, rupturas e conexões.
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É necessário ressaltar que a distinção entre molar e molecular nos planos não se dá pelo tamanho - grande e pequeno -, mas pelo sistema de referência considerado, sendo a diferença qualitativa. O molecular indica a relação com o fluxo intensivo que o atravessa, e o molar, por sua vez, se define por sua relação com a linha de segmento que tenta capturar a heterogeneidade, a energia intensiva da vida, que sempre escapa. Essa relação entre molecular e molar não se dá por antagonismo, mas por coexistência e justaposição. Embora com funcionamentos distintos, "Nem por isso deixa de haver uma correlação dos dois aspectos, pois é com a linearização e a segmentarização que um fluxo se esgota, e é delas também que parte uma nova criação (Deleuze & Guattari, 1996, p. 96). Dessa maneira, os fluxos, em estado de imanência, estão presentes em todos os planos, e o que se altera é sua composição: segmentar, estratificada, no plano de organização, e fluida, conectiva, no plano de consistência. Segundo Deleuze e Guattari (1996), a forma segmentar estanca a circulação da vida e opera cortes e recortes que produzem o modo estabelecido de nos colocarmos no mundo, tendo como objetivo estabelecer métodos de hierarquização e de organização. Por outro lado, a forma fluida é mutante e criadora e corresponde à possibilidade de agenciar, de construir uma linha de fuga, outro território existencial. O plano de organização sustenta as linhas duras da subjetividade, enquanto o plano de consistência sustenta suas linhas flexíveis, que podem se transformar em linhas de fuga que se dirigem para a invenção, para a estranheza da vida. Um território existencial é formado quando os elementos heterogêneos que compõem a subjetividade ganham alguma homogeneidade, determinada composição. Esse território localiza-se na interface entre o que se repete e é conhecido e o que pode afetar, desterritorializar, produzir outra composição, via agenciamentos.
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A realidade, apreendida pelo viés da imanência e da exterioridade, é, sobretudo, uma reunião de linhas subjetivas e sociais, de natureza e de cultura. Essa não separação é possível porque, nessa perspectiva, tudo é atravessado por segmentaridades molares e desterritorializações moleculares, por planos, superfícies sobrepostas, que deslizam o tempo todo, processualmente. Os fluxos da vida são ora mutantes e conectivos, ora codificados e reterritorializados, não pertencendo a um indivíduo ou a determinado grupo social. Eles são detentores de funcionamentos diferentes de acordo com o plano em que se inserem, conforme as relações que são desenvolvidas. Nesse contexto, cada pesquisador e cada objeto de estudo habitam um "meio", circulam em formas de se relacionar, constituindo um território que envolve marcas, estratos, conexões, relações. São as circunstâncias, os elementos que se estabelecem entre os encontros que podem ou não trazer outras marcas, romper com sentidos conhecidos e fundar outros impensáveis. Logo, são essas relações que devem ser mapeadas no método cartográfico, para se conhecer a realidade em sua complexidade.
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O que a cartografia persegue, a partir do território existencial do pesquisador, é o rastreamento das linhas duras, do plano de organização, dos territórios vigentes, ao mesmo tempo em que também vai atrás das linhas de fuga, das desterritorializações, da eclosão do novo. Cartografar é mergulharmos nos afetos que permeiam os contextos e as relações que pretendemos conhecer, permitindo ao pesquisador também se inserir na pesquisa e comprometer-se com o objeto pesquisado, para fazer um traçado singular do que se propõe a estudar. Nesse sentido, a cartografia tem como eixo de sustentação do trabalho metodológico a invenção e a implicação do pesquisador, uma vez que ela baseia-se no pressuposto de que o conhecimento é processual e inseparável do próprio movimento da vida e dos afetos que a acompanham (Rolnik, 1989). Na invenção, é preciso estar atento aos encontros, às virtualidades que estalam nos agenciamentos e que são oriundos das desestabilizações que, no processo de trabalho, acometem tanto o pesquisador quanto seu objeto de estudo, seu campo. Na implicação do pesquisador é que se encontra um dos mais valiosos dispositivos de trabalho no campo. É a partir de sua subjetividade que afetos e sensações irrompem, sentidos são dados, e algo é produzido.
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O conhecimento, por sua vez, emerge do plano de forças que compõe a realidade, ora operando em prol daquilo já estabelecido, ora operando a favor de agenciamentos produtivos, de acontecimentos que trazem o novo, processual e singularmente. Mas sempre tentando desarticular as práticas e os discursos instituídos, elucidar os processos complexos, as relações despotencializadoras que impedem a invenção - é nesse jogo que se dá a construção do conhecimento. Vale lembrar que, nessa perspectiva, o rigor e a precisão localizam se exatamente na sustentação da pressão exercida pelas forças desses planos, que, como vimos acima, possuem funcionamentos distintos, ora tendendo à estabilização, ora à caotização. Dessa maneira, a cartografia se contrapõe às pesquisas cientificistas tradicionais, objetivando romper com as dicotomias teoria-prática, sujeito-objeto, articulando pesquisador e campo de pesquisa.
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Considerações Finais
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Tendo em vista que a realidade não é dada, mas sim construída também através de produções de conhecimento que se constituem como práticas discursivas, sociais e históricas, precisamos nos indagar acerca de qual psicologia estamos produzindo. Nesse sentido, podemos pensar, retornando à complexidade e aos impasses atuais da psicologia, pontuados no início desse texto, quais os efeitos da produção de conhecimento que geramos e sua efetiva contribuição para o que ocorre no mundo ao nosso redor. Sabemos que as respostas a essas questões são transitórias e locais, encontrando-se nos impasses que enfrentamos em nosso cotidiano de trabalho. Com certeza, os paradigmas emergentes e a cartografia ainda constituem desafios para nós, pesquisadores formados dentro de uma tradição moderna, acostumados a fragmentar, a racionalizar e a perseguir a verdade. Esse é um campo em construção, que combate uma lógica da racionalidade hegemônica na pesquisa, e se fundamenta, como salientam Barros e lucero (2005), em uma perspectiva ético-política que "afirma a vida na sua potência de diferenciação, nas suas modulações, na sua polaridade, lutando contra diferentes formas de captura colocadas em funcionamento por modelos padronizados de ser e estar no mundo" (p.7).
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Nessa perspectiva, supomos que a cartografia aponta para a construção de saídas e inspirações para quem se propõe a estudar a realidade, promovendo uma flexibilização metodológica, que tem como intuito escapar da reprodução e do acomodamento intelectual, características necessárias para acompanhar as mudan ças em curso na Psicologia. Entretanto, no nosso entender, também a cartografia contém riscos. O primeiro deles, e o mais usual, é ser utilizada como um modelo, um padrão a ser seguido, usado em obediência à nossa formação dentro do paradigma moderno, fórmula que se afasta sinistramente do que esta propõe: a ousadia de rastrear a heterogeneidade, a complexidade. Nesse sentido, operaria para a reprodução e não para a criação, estancando a circulação da vida, operando cortes e recortes no processo de pesquisa, organizando de forma fascista o objeto de estudo e desqualificando de maneira transcendente outras formas de pesquisar.
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Outro risco que percebemos no uso desse método é o da produção de trabalhos sem fundamentação, que constituem um aglomerado de saberes desconectados. Embora seja preciso escapar à postura defensiva de correntes da Psicologia, sejam as adeptas do paradigma moderno, sejam as seguidoras dos paradigmas emergentes, não é desejável, nesse processo, encobrir confusões conceituais, apresentando-se superficial e leviano com a produção de conhecimento. Essa também não é a proposta desse método. A cartografia exige rigor e, no caso, não se trata somente da sustentação da singularidade e da invenção, mas também o uso dos conceitos incorporados à processualidade da pesquisa, sustentando a pressão exercida pelo plano de forças no território acadêmico. Por outro lado, seu uso não deve ser dogmático, hermético. A força dos conceitos localiza-se fora deles, em sua potência de criar, em sua capacidade de associar ideias, incitar pensamentos, leituras, de entrecruzar linhas e pontos temporariamente arranjados, para mais adiante serem desconectados ou reconectados em outra composição. Os conceitos sempre possuem um compromisso com o campo problemático que lhes dá sentido, gerando uma consistência que unifica traços intensivos, promovendo formas de expressão, e não devem ser desconsiderados, pois "os conceitos são exatamente como sons, cores ou imagens, são intensidades, que lhes convêm ou não, que passam ou não passam" (Deleuze & Parnet, 1998, p. 12), vigorosos dispositivos para a presença da realidade, potentes intercessores para a invenção.
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Acreditamos na necessidade de apostar em produção, transmissão e aplicação do conhecimento em Psicologia, não de maneira reprodutiva e sedimentada, mas de forma que valorize a singularidade e a invenção, arriscando novas maneiras de pensar e também de viver. Somente sustentando a heterogeneidade da vida e da realidade podemos contribuir para uma expansão da Psicologia que nos conduza a outras práticas sociais, como estamos sendo convocados a fazer. De acordo com Zourabichvili (2004), a vida, a partir de um raciocínio deleuziano, pode ser entendida como uma potência, uma positividade indeterminada e informe, que é em si criação, ao mesmo tempo em que coexistem fechamentos e reproduções. A vida é rizoma, e pode ser percorrida em diversas direções, sendo reinventada em cada viagem e por cada um que a percorre. É feita de direções flutuantes, que transbordam, sem remeterem a uma unidade. Isso não seria o próprio ato de conhecer/pesquisar? Observamos que a produção de conhecimento calcada na cartografia implica um exercício de desapego às formas acadêmicas dominantes e instituídas, ainda que elas estejam imanentemente presentes. Nesse sentido, é preciso aventurar-se na criação de um circuito de conhecimento que atue como um dispositivo para formar planos de expansão da vida, para expressar e encarnar as sensações que as relações, a exterioridade, os meios estão produzindo nas subjeti vidades, religando a pesquisa com a vida.
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Notas
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* Este texto faz parte da pesquisa intervenção cartográfica "As relações equipe-família no Centro Psicopedagógico Renato De Avelar Azeredo", financiada pela Fundação de Amparo à Pesquisa de Minas Gerais - FAPEMIG, abordando os estudos teórico-metodológicos do projeto.
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1 A palavra "paradigma" foi introduzida por Kuhn (1975) para descrever uma troca do modelo dominante em uma ciência, possuindo dois significados: um, ligado à constelação de crenças, valores e técnicas que afetam toda comunidade científica, e o outro, ligado ao modelo que embasa as transformações científicas. Nesse texto é usada no segundo sentido.
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2 Os termos pesquisa-ação e pesquisa participante têm a mesma origem, a Psicologia Social de Kurt Lewin, e alguns pontos em comum, tais como a crítica à pesquisa tradicional, ao distanciamento entre sujeito e objeto de estudo, à participação da população pesquisada e à necessidade de transformação social. Haguette (1987) coloca que, apesar desses vários pontos unificadores, há uma diferenciação de terminologia relacionada aos países em que elas ocorrem. Na Europa, principalmente na França, este tipo de pesquisa recebe o nome de pesquisa-ação, associada à corrente psicossociológica, e direciona-se para as instituições sociais e para os movimentos sociais. Na América Latina, esse tipo de pesquisa recebe o nome de pesquisa participante e caracteriza-se por um distanciamento da corrente psicossociológica, fundamentando-se nos princípios humanistas, marxistas e religiosos. Preocupada com as desigualdades sociais, teve forte influência de Paulo Freire.
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3 Ainda com esse mesmo objetivo, embora com metodologias distintas, percebemos a genealogia de Michel Foucault e as propostas construtivistas baseadas nos Novos Paradigmas, fundamentando pesquisas na Psicologia. A genealogia é um método com forte preocupação com a produção de modos de subjetivação que atravessam e atualizam os saberes e as relações de poder. Busca apreender a relação entre os sujeitos e a sociedade, atravessados pelas práticas discursivas e pelo momento histórico. Em Foucault (2004), a genealogia parte da realidade como campo de forças, como luta de intensidades e trabalha com uma noção de história "efetiva" que se contrapõe à história tradicional, que lida com a temporalidade linear, a homogeneidade, a busca da origem e da verdade. A história "efetiva" é genealógica e se produz a partir de uma fragmentação da linearidade, destacando a singularidade do acontecimento. Os Novos Paradigmas correspondem a mudanças no pensamento científico contemporâneo, ocorridas em diversos campos: na Física e na Química com Ilya Prigogine; na Biologia com Humberto Maturana e Francisco Varela; na Cibernética de segunda ordem com Henry Von Foerster. Essas ideias são orientadas para a complexidade e embasadas na premência de se trabalhar com o acaso, com o indeterminismo, com a incerteza. Os Novos Paradigmas fundamentam as propostas construtivistas no campo da pesquisa e insistem que a realidade é sempre construída e atravessada a todo instante pela autorreferência e pela reflexividade (Schnitman, 1996).
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4 As ideias de Gilles Deleuze e Félix Guattari recebem vários nomes, dentre eles, Filosofia da Diferença, Pragmática Universal, Paradigma Estético, Paradigma Ético Estético, não somente Esquizoanálise, uma vez que os autores não tinham preocupação com a reprodução dos nomes e conceitos.
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Referências Bibliográficas
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Benevides de Barros, R. (2005). A psicologia e o sistema único de saúde: quais interfaces? Psicologia e Sociedade, 17(2), 21-25. Acesso em 12 de agosto, 2006, em http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0102-71822005000200004&lng=pt&nrm=iso        [ Links ]
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Chizzotti, A. (1998). Da pesquisa experimental. In A. Chizzotti, Pesquisa em ciências humanas e sociais (2ª ed.,

Edição das 18h13min de 2 de abril de 2015

ver também

Cartografar

A cartografia e a relação pesquisa e vida Roberta Carvalho Romagnoli Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, Belo Horizonte, Brasil [Psicol. Soc. vol.21 no.2 Florianópolis maio/ago. 2009 doi: 10.1590/S0102-71822009000200003 http://www.scielo.br/scielo.php?pid=S0102-71822009000200003&script=sci_arttext]

O Paradigma Moderno e a Psicologia As ciências surgem no Ocidente, favorecendo a migração do polo religião, central nas sociedades tradicionais, para o polo razão, sustentáculo da chamada Modernidade. Nesse deslocamento, a ciência, criada pelo homem, determinista, matematizada e fundamentada em leis, apropria-se do lugar central da sociedade, ocupado por Deus, uma vez que os fenômenos naturais e sociais eram apreendidos, até então, por explicações divinas. Baseada em esquemas de eficácia e rendimento, conquista um espaço absoluto, impondo-se como força hegemônica na cultura ocidental moderna, relegando ao descrédito e ao esquecimento todos os outros saberes que não estão em consonância com seus pressupostos básicos, a saber: objetividade, causalidade, sistematização e produtividade. Permite, assim, um avanço progressivo da ação do homem sobre a natureza, proporcionado pela primazia da razão.

Vale lembrar que, conforme Veiga-Neto (2002), o paradigma da ciência moderna encontra-se calcado na razão, na consciência, no sujeito soberano, no progresso e na totalidade do mundo 1. Nesse sentido, notamos inicialmente uma grande ascensão das ciências exatas e naturais, que estavam de acordo com os pressupostos desse momento histórico, pois é nelas que se encontra a possibilidade de fundamentação das evidências mate máticas, base sobre a qual se desenvolverá o pensamento tecnológico e manipulativo. Nessa proposta iluminista, o formalismo metodológico sustenta-se na neutralidade/objetividade, com forte mitificação da racionalidade. E o homem torna-se um ser basicamente racional, que usa sua capacidade unida a uma cuidadosa observação do mundo exterior, para a produção de conhecimento científico e o consequente domínio da natureza, tendo como meta abordar a natureza essencial das "coisas", a partir da noção de verdade.

No seu surgimento, as Ciências Humanas se inserem no contexto da época, altamente positivista. Sua ascensão foi marcada pela abordagem empírica, traduzida por meio de experimentos, com o intuito de compreender a realidade. A Psicologia se torna ciência aliada às Ciências Naturais, no final do século XIX, produzindo conhecimento através do método experimental, que tem na objetividade, na quantificação e na generalização os sustentáculos da pesquisa. Para esse método, as leis da natureza são o reino da simplicidade e da regularidade, onde é possível observar e medir com rigor, na crença de que as Ciências Humanas têm que imitar as Ciências Naturais. Ou seja, essa perspectiva defende que é preciso estudar os fenômenos sociais como se fossem naturais. Nesse sentido, é científico o quantitativo que permite o manejo pragmático dos fatos, inserido em um mundo objetivo e determinista. torna-se necessário, então, basear-se na utilização dos termos matemáticos para a compreensão da realidade e apropriação da linguagem de variáveis para especificar atributos e qualidades do objeto de investigação, em busca da generalidade e da regularidade dos fatos (Chizzotti, 1998).

Até a 2ª metade do séc. XX, a pesquisa experimental e seu método constituíam o padrão de produção de conhecimento científico, inclusive para a própria Psicologia. A partir dessa época, no entanto, paralela à vertente positivista, base desse tipo de pesquisa, surge um movimento filosófico, que sustenta a visão de mundo existencial, em que a vivência e a percepção que o ser humano tem de suas experiências torna-se essencial. O conhecimento científico se alia, dessa maneira, ao método fenomenológico como recurso para se investigar a vivência do sujeito através da consciência, em associação com o Existencialismo, que propaga a subjetividade e a atribuição de significados como a verdadeira essência da existência. Essa leitura inaugura uma mudança radical da investigação científica e insiste no homem que tem consciência de sua própria vida e da dos seres com quem se relaciona, como peça fundamental do trabalho investigativo, enfatizando não o que existe na realidade em si, mas a realidade a partir da sua existência para a consciência (Forghieri, 1993).

Inaugura-se a era das pesquisas qualitativas, e não somente quantitativas, que visam ao aprofundamento no mundo dos significados das ações e das relações humanas. Surge nesse momento histórico a distinção entre pesquisa quantitativa e pesquisa qualitativa (Smith, 1994). Guardadas as devidas diferenças entre métodos distintos, a pesquisa qualitativa persegue o mundo social através das interpretações dos fenômenos, buscando as vivências, as experiências e a cotidianidade. Sendo assim, a análise social deve ser realizada através da compreensão da dinâmica das relações sociais que são depositárias de crenças, valores, atitudes e hábitos, como propaga a Fenomenologia, ou da luta de classes, como defende a Dialética, que veremos adiante. É necessário ressaltar que não existe apenas uma forma de pesquisar. Tanto a pesquisa quantitativa quanto a pesquisa qualitativa podem oferecer importantes recursos para as Ciências Humanas, dependendo da temática a ser estudada e do objetivo proposto. Todas as duas correntes possuem suas aplicações, suas utilidades e suas limitações.

Retornando à pesquisa em Psicologia, observamos ainda forte influência da Dialética, que tenta fazer um desempate entre os métodos citados anteriormente, propondo-se a abarcar o conhecimento como fruto das relações sociais, visando encontrar na parte a relação com o todo, indo ao encalço da interioridade e da exterioridade como constitutivas dos fenômenos. Desses princípios deriva que, para se conhecer realmente uma realidade, é necessário estudá-la em todos os seus aspectos, relações e conexões, pois tudo está em constante transformação e correlação, partindo-se da premissa de que, no objeto de estudo, está sempre presente algo que nasce, se desenvolve, se contradiz. Com forte crítica à neutralidade científica, surge a pesquisa-ação, também chamada de pesquisa participante, enfatizando o envolvimento do pesquisador com seu objeto de estudo, pois a pesquisa passa a ser também um fator de transformação social 2.

A abordagem dialética se propõe a abarcar, ao mesmo tempo, o sistema de relações do mundo que nos rodeia, como modo de conhecimento exterior ao sujeito, pois acredita que é a matéria que origina a consciência; e também as representações sociais que traduzem o significado deste mundo. Nesse sentido, coloca-se como uma terceira alternativa frente ao método experimental e ao método fenomenológico, acreditando que o quantitativo e o qualitativo caminham lado a lado, pensando a relação da quantidade como uma das qualidades dos fatos e fenômenos. todo fenômeno ou processo social deve ser entendido nas suas determinações e transformações dadas pelos sujeitos, mediante uma relação intrínseca de oposição e complementaridade entre mundo natural e social, entre pensamento e base material. Dessa maneira, a cientificidade está associada à complexidade da natureza e das culturas, e o conhecimento sempre vem associado à práxis, pois a lógica do pensamento está vinculada aos processos históricos das mudanças, dos conflitos sociais e suas contradições. De acordo com Haguette (1987), esse tipo de pesquisa faz uma proposta de união entre o saber acadêmico - conquista do conhecimento - e a práxis - transformação através da ação -, visando à mobilização e à tomada de consciência. Valoriza ainda a contradição dinâmica do fato observado e a atividade criadora do sujeito que observa, as oposições contraditórias entre o todo e a parte e os vínculos do saber e do agir com a vida social dos homens.

Embora revolucionárias em relação às pesquisas quantitativas e experimentais, a pesquisa fenomenológica e a pesquisa-ação, fundamentadas na fenomenologia e na dialética, respectivamente, se amparam ainda no paradigma moderno que concebe o método científico como um instrumento, por excelência, de explicitação das verdades do mundo, guardadas as devidas diferenças epistemológicas. Para alcançar esse patamar, é necessário transitar por um campo teórico estabelecido e legitimado e realizar estudos coerentes com o estatuto de cientificidade. Nessa articulação, produção de conhecimento versus realidade, a teoria é aplicada ao objeto de estudo de forma interpretativa, sustentando um conhecimento que é, em si, reducionista e homogeneizante, com a pretensão de compreensão plena dessa relação. Ou seja, o paradigma moderno parte do pressuposto de que a teoria é separada do objeto e de que não são, de fato, indissociáveis. Além disso, presume que a realidade deva estar em consonância com a teoria, sendo passível de ser interpretada pela perspectiva teórica escolhida pelo pesquisador. Além da teoria, no paradigma moderno, a pesquisa se funda em procedimentos metodológicos que permitem certo domínio do objeto de estudo.

Em Psicologia, lidamos com uma variedade de metodologias e técnicas que se mesclam conforme a necessidade e a viabilidade do trabalho proposto. Cabe ao pesquisador a sua seleção, para executar seu estudo e elucidar os princípios que regem a compreensão das questões levantadas por ele. Tudo isso conduzindo a uma sistematização do material, trilhando caminhos para a viabilização do trabalho acadêmico e outorgando cientificidade ao processo.

É necessário pontuar que cada método possui sua explicação do que ocorre entre sujeito e objeto. O método experimental parte do pressuposto de que essa articulação é mediada por relações ordenadas entre fatos observados empiricamente. O objeto é exterior ao sujeito - nessa interação são as consequências do comportamento sobre o ambiente e como essas incidem no organismo que possibilitam uma análise funcional das contingências, passíveis de serem mensuradas quantitativamente. A partir de critérios de objetividade científica, pode-se estudar o comportamento que é observável publicamente (Vicentini, 2001). O método fenomenológico, por sua vez, busca nessa relação a consciência que daí emerge, através dos significados que o sujeito atribui ao objeto. Essa relação não tem a ver somente com a objetividade, mas, sobretudo com a inscrição do objeto na consciência e sua experienciação (Amatuzzi, 2006). Por outro lado, o método dialético tem como objetivo abranger a articulação entre o diaa-dia de determinado grupo social, de certo objeto de estudo, com o sistema de ideias e representações que o constitui e que deriva na alienação, no desconhecimento do sujeito dos processos que ele está vivendo em seu cotidiano, da desigualdade do sistema social. Ou seja, na relação dinâmica entre sujeito e objeto, deve-se observar a prática social intrínseca e sempre contraditória e conflitiva, portadora de dimensões históricas e ideológicas (Paulon, 2005).

Nessas abordagens, o método científico é um instrumento para a explicitação da verdade, embasado, como vimos, na conexão assídua entre teoria e procedimentos metodológicos. E a racionalidade, mesmo que seja objeto de grande questionamento nas Ciências Humanas, a garantia de seu alcance.

O Paradigma Emergente e a Cartografia Durante muito tempo, essas perspectivas epistemológicas sustentaram o conhecimento em Psicologia no Brasil (Kahhale, 2002). todavia, hoje, a própria ciência está em crise. De acordo com Santos (2002), "Estamos no fim de um ciclo de hegemonia de certa ordem científica. As condições epistêmicas das nossas perguntas estão inscritas no avesso dos conceitos que utilizamos para lhes dar resposta" (p. 9). Ou seja, passase a considerar que a teoria não transcende a realidade e nem está dissociada da prática, também fazendo parte do processo de construção histórica da realidade. Com o grande avanço científico moderno e sua enorme e importante produção, tornou-se evidente a fragilidade de suas ferramentas para abranger o que ocorre, de fato, na vida. Dessa maneira, nos deparamos com a complexidade da realidade, e também da subjetividade, opondo-se frontalmente a um conhecimento que se impõe como verdade, generalizante e simplificado, e que tem como objetivo alcançar a previsibilidade a partir de um espaço inteligível de certezas (Morin, 1996). De acordo com Veiga-Neto (2002), vivemos hoje a emergência de um pensamento pós-moderno que visa a um questionamento contínuo das ações com análise crítica. Esse pensamento possui como características: a humildade epistemológica, ao não perseguir a verdade; a busca de ferramentas úteis para o entendimento do mundo e o abandono da ideia de um lugar privilegiado a partir do qual podemos compreender definitivamente as relações que nos circundam.

Nesse sentido, Morin (1983) faz uma crítica ao paradigma moderno, chamando-o de paradigma da simplificação. Nesse viés hegemônico da ciência, há, de fato, um primado da disjunção e da redução, para embasar uma visão da realidade ordenada e simplificada, operando através de reducionismos que visam eliminar o problema da complexidade. Para tal, há uma insistência no estudo dos fenômenos isolados e dissociados.adisjunção separa o objeto do meio, o físico, do biológico, o biológico, do humano, divide o que vai ser estudado em categorias e disciplinas, operando pelo estabelecimento de elementos não-ligados. Ocorrem, por outro lado, a redução do humano ao biológico, do biológico ao físico-químico, do complexo ao simples, com o que se chega a uma unificação abstrata que anula a diversidade.

Em contrapartida, vem à tona um conhecimento não dualista, que não faz a separação entre natureza/ cultura, objetivo/subjetivo, quantitativo/qualitativo. Além disso, insiste na produção de um conhecimento local e transitório que reconhece a necessidade de uma plurali dade metodológica, pois "Cada método é uma linguagem, e a realidade responde na língua em que foi perguntada" (Santos, 2002, p. 48), destacando-se a operação reducio nista que daí deriva. Pretende-se, nessa fase de transição da ciência, driblar as certezas e os reducionismos, em uma tentativa de apreender a complexidade que, de fato, faz parte de todo e qualquer objeto de estudo.

Além da ênfase na complexidade, vivemos hoje vários impasses no campo da Psicologia, a saber: a ampliação dos campos de trabalho, o convite à promoção de saúde, o questionamento dos efeitos de nossas práticas na gerência cada vez maior da vida, dentre outros. tudo isso, no nosso entender, nos impele a produzir dispositivos singulares que não estejam a serviço da serialização instituída, seja no campo da produção de conhecimento, seja no campo da intervenção. E aponta para uma lacuna entre nossa formação, ainda efetuada nos moldes iluministas, calcada na premissa de que a razão tem como atividade principal iluminar o homem, e a realidade que os psicólogos irão enfrentar ao sair da academia. No nosso entender, a formação dominante favorece um despreparo para enfrentar as profundas mudanças culturais, sociais e subjetivas em que nos encontramos. Observamos que, cada vez mais, o psicólogo é convocado a intervir na complexidade, em campos de atuação em que os "especialismos" de nossas áreas e sua tradicional divisão, em área da saúde, da educação, do trabalho e da comunidade, não se sustentam no cotidiano. Como exemplo desses novos campos de atuação, temos as ONGs, o PSF, o CRAS, dentre outros.

A crise da ciência, aliada ao momento atual da nossa profissão, nos leva a defender a não separação da Psicologia em áreas e nem em polarizações antagônicas, com o intuito de driblar as dicotomias e insistir na transdisciplinaridade. Passos e Benevides de Barros (2000) discutem o desafio de se pensar a clínica nessa perspectiva, rastreando o que ela tem de potência de criação. Não se restringindo a esse campo, acreditamos que esse processo possa e deva estar presente em toda a Psicologia, que ainda mantém as dicotomias sujeito-objeto, teoria-prática e insiste em fronteiras rígidas na definição das disciplinas, de seus métodos e objetos de pesquisa. Segundo os referidos autores, a transdisciplinaridade busca exatamente a perda da identidade de cada teoria, de cada prática, para ocorrer algo no "entre", a partir da desestabilização das "certezas" de cada disciplina, apostando ainda na criação de uma relação de intercessão com outros saberes/poderes/disciplinas, pois é nesse "entre" que a invenção acontece, como nos chama a atenção Benevides de Barros (2005). E toda essa processualidade exige da academia uma produção de conhecimento que fundamente a fase de transição em que nossa profissão se encontra, pois, como vimos, estamos no fim de certa ordem científica. Nesse sentido, acreditamos que as pesquisas baseadas no paradigma moderno, que se fundamentam em cisões e dicotomias, não contribuem efetivamente para os desafios que precisamos enfrentar. Sem dúvida, houve uma época em que a produção de conhecimento deveria se atrelar ao paradigma moderno. Entretanto, a contemporaneidade e a Psicologia atual nos instigam a buscar outros modos de conhecer.

Para tentar apreender, mesmo que transitoriamente, a processualidade que a transdisciplinaridade propaga, pode-se trabalhar com a cartografia, método proposto por Deleuze e Guattari, utilizado em pesquisas de campo voltadas para o estudo da subjetividade (Kastrup, 2007; Kirst, Giacomel, Ribeiro, Costa, & andreoli, 2003). A cartografia se apresenta como valiosa ferramenta de investigação, exatamente para abarcar a complexidade, zona de indeterminação que a acompanha, colocando problemas, investigando o coletivo de forças em cada situação, esforçando-se para não se curvar aos dogmas reducionistas. Contudo, mais do que procedimentos metodológicos delimitados, a cartografia é um modo de conceber a pesquisa e o encontro do pesquisador com seu campo. Entendemos que a cartografia pode ser compreendida como método, como outra possibilidade de conhecer, não como sinônimo de disciplina intelectual, de defesa da racionalidade ou de rigor sistemático para se dizer o que é ou não ciência, como propaga o paradigma moderno. Cabe salientar que, não raro, a ideia de método é atrelada à de metodologia que, por sua vez, trata do formalismo e das prescrições para se alcançar a cientificidade, explicitando os procedimentos que já estariam consolidados dentro da ciência. Dessa maneira, a metodologia corresponde aos instrumentos para se fazer ciência, centrando-se no "como" fazer ciência, traduzindo o caminho do pensamento e a prática exercida na abordagem da realidade. também não é essa a proposta. Retornando ao conceito de método, aqui o utilizamos no sentido atribuído por Drawin (2001), em que método corresponderia a um caminho levado a um fim, associado a uma "reivindicação de um trabalho, de um renovado esforço, o que não seria necessário se já se possuísse uma fórmula prefixada, e se o caminho para o conhecimento já houvesse sido conquistado" (p.10). Nessa perspectiva, o método é uma nova proposta para reencontrar o saber que se encontra em crise. Nesse sentido, a cartografia é um método, pois não parte de um modelo pré-estabelecido, mas indaga o objeto de estudo a partir de uma fundamentação própria, afirmando uma diferença, em uma tentativa de reencontrar o conhecimento diante da complexidade.


A cartografia, como portadora de certa concepção de mundo e de subjetividade, a serem apresentados abaixo, traz um novo patamar de problematização, contribuindo para a articulação de um conjunto de saberes, inclusive outros que não apenas o científico, e favorecen do a revisão de concepções hegemônicas e dicotômicas. Nessa proposta, o papel do pesquisador é central, uma vez que a produção de conhecimento se dá a partir das percepções, sensações e afetos vividos no encontro com seu campo, seu estudo, que não é neutro, nem isento de interferências e, tampouco, é centrado nos significados atribuídos por ele. É isso o que leva Mairesse (2003) a dizer que a cartografia acontece como um dispositivo, pois, no encontro do pesquisador com seu "objeto", diversas forças estão presentes, fazendo com que ambos não sejam mais aquilo que eram. Nesse sentido, o método cartográfico "desencadeia um processo de desterritorialização no campo da ciência, para inaugurar uma nova forma de produzir o conhecimento, um modo que envolve a criação, a arte, a implicação do autor, artista, pesquisador, cartógrafo" (Mairesse, 2003, p. 259).

A cartografia parte ainda de outra leitura da realidade, pois não quer só buscar o qualitativo, mas também romper com a separação sujeito e objeto 3. Em contraposição a uma forma de pensar dicotômica, essa vertente convoca a imanência, a exterioridade das forças que atuam na realidade, buscando conexões, abrindo-se para o que afeta a subjetividade. Esta última deve ser pensada como um sistema complexo e heterogêneo, constituído não só pelo sujeito, mas também pelas relações que ele estabelece. Essas relações denunciam a exterioridade de forças que incidem tanto sobre o pesquisador quanto sobre o objeto de estudo, e atuam rizomaticamente, de uma maneira transversal, ligando processualmente a subjetividade a situações, ao coletivo, ao heterogêneo. a subjetividade é constituída por múltiplas linhas e planos de forças que atuam ao mesmo tempo: linhas duras, que detêm a divisão binária de sexo, profissão, camada social, e que sempre classificam, sobrecodificam os sujeitos; e linhas flexíveis, que possibilitam o afetamento da subjetividade e criam zonas de indeterminação, permitindo-lhe agenciar. Esse afetamento da subjetividade pelo que não é ela, pelas relações efetuadas, pela intersecção com o "fora", forma um agenciamento. Quando isso ocorre, linhas de fuga são construídas, convergindo em processos que trazem o novo. Esses processos são sempre coletivos, conectando-se ao que está aquém e além do sujeito e construindo novos territórios existenciais (Deleuze & Parnet, 1998).

Na leitura esquizoanalítica, essa é a dinâmica dos processos de subjetivação 4. Os deslocamentos da subjetividade se dão a partir do "fora", portador de forças estranhas que pedem uma decifração ao desestabilizar o território existencial conhecido. Essas forças, quando entram em contato com a subjetividade, aumentam a impressão de estranheza do mundo e conduzem a rupturas de sentido. De acordo com Rolnik (1999), as rupturas de sentido ocorrem quando a subjetividade é lançada na processualidade da vida e se vê forçada a trilhar novos caminhos via agenciamentos maquínicos, produtivos, a habitar novas formas de viver. Esse é o movimento próprio da vida, da criação. As linhas da subjetividade compõem o território existencial, o modo de existência de cada um de nós, e também possibilitam que se exerça a invenção.

Esse raciocínio aborda a realidade através de superfícies, de planos simultâneos que coexistem sem hierarquia nem determinação. O plano de organização corresponde ao que está instituído socialmente de forma molar, ordenando o mundo e a subjetividade em segmentos, estratos, de maneira dicotômica e dissociativa, codificando-a, registrando-a em processos classificatórios, via operações de transcendência, que formam estratos, segmentos que homogeneizam os fluxos da vida. Nessa superfície, os fluxos são presos a códigos, e cada termo ganha sentido opondo-se a outro. Por outro lado, o plano de consistência é o plano invisível de expansão da vida, composto pelas forças moleculares e invisíveis que atravessam o campo social. É nesse plano que se dão os encontros e os agenciamentos que vão gerar novos sentidos, novas formas de expressão e promover a resistência ao que tende a se reproduzir no plano de organização. Nessa superfície não há oposição, mas os fluxos se encontram em uma variação contínua de intensidades. Esses dois planos se apoiam no plano de imanência, que dá suporte às relações entre as forças componentes da realidade, molares e moleculares, compondo o "meio" em que tudo se dá - dimensão de fluxos, segmentos, rupturas e conexões.

É necessário ressaltar que a distinção entre molar e molecular nos planos não se dá pelo tamanho - grande e pequeno -, mas pelo sistema de referência considerado, sendo a diferença qualitativa. O molecular indica a relação com o fluxo intensivo que o atravessa, e o molar, por sua vez, se define por sua relação com a linha de segmento que tenta capturar a heterogeneidade, a energia intensiva da vida, que sempre escapa. Essa relação entre molecular e molar não se dá por antagonismo, mas por coexistência e justaposição. Embora com funcionamentos distintos, "Nem por isso deixa de haver uma correlação dos dois aspectos, pois é com a linearização e a segmentarização que um fluxo se esgota, e é delas também que parte uma nova criação (Deleuze & Guattari, 1996, p. 96). Dessa maneira, os fluxos, em estado de imanência, estão presentes em todos os planos, e o que se altera é sua composição: segmentar, estratificada, no plano de organização, e fluida, conectiva, no plano de consistência. Segundo Deleuze e Guattari (1996), a forma segmentar estanca a circulação da vida e opera cortes e recortes que produzem o modo estabelecido de nos colocarmos no mundo, tendo como objetivo estabelecer métodos de hierarquização e de organização. Por outro lado, a forma fluida é mutante e criadora e corresponde à possibilidade de agenciar, de construir uma linha de fuga, outro território existencial. O plano de organização sustenta as linhas duras da subjetividade, enquanto o plano de consistência sustenta suas linhas flexíveis, que podem se transformar em linhas de fuga que se dirigem para a invenção, para a estranheza da vida. Um território existencial é formado quando os elementos heterogêneos que compõem a subjetividade ganham alguma homogeneidade, determinada composição. Esse território localiza-se na interface entre o que se repete e é conhecido e o que pode afetar, desterritorializar, produzir outra composição, via agenciamentos.

A realidade, apreendida pelo viés da imanência e da exterioridade, é, sobretudo, uma reunião de linhas subjetivas e sociais, de natureza e de cultura. Essa não separação é possível porque, nessa perspectiva, tudo é atravessado por segmentaridades molares e desterritorializações moleculares, por planos, superfícies sobrepostas, que deslizam o tempo todo, processualmente. Os fluxos da vida são ora mutantes e conectivos, ora codificados e reterritorializados, não pertencendo a um indivíduo ou a determinado grupo social. Eles são detentores de funcionamentos diferentes de acordo com o plano em que se inserem, conforme as relações que são desenvolvidas. Nesse contexto, cada pesquisador e cada objeto de estudo habitam um "meio", circulam em formas de se relacionar, constituindo um território que envolve marcas, estratos, conexões, relações. São as circunstâncias, os elementos que se estabelecem entre os encontros que podem ou não trazer outras marcas, romper com sentidos conhecidos e fundar outros impensáveis. Logo, são essas relações que devem ser mapeadas no método cartográfico, para se conhecer a realidade em sua complexidade.

O que a cartografia persegue, a partir do território existencial do pesquisador, é o rastreamento das linhas duras, do plano de organização, dos territórios vigentes, ao mesmo tempo em que também vai atrás das linhas de fuga, das desterritorializações, da eclosão do novo. Cartografar é mergulharmos nos afetos que permeiam os contextos e as relações que pretendemos conhecer, permitindo ao pesquisador também se inserir na pesquisa e comprometer-se com o objeto pesquisado, para fazer um traçado singular do que se propõe a estudar. Nesse sentido, a cartografia tem como eixo de sustentação do trabalho metodológico a invenção e a implicação do pesquisador, uma vez que ela baseia-se no pressuposto de que o conhecimento é processual e inseparável do próprio movimento da vida e dos afetos que a acompanham (Rolnik, 1989). Na invenção, é preciso estar atento aos encontros, às virtualidades que estalam nos agenciamentos e que são oriundos das desestabilizações que, no processo de trabalho, acometem tanto o pesquisador quanto seu objeto de estudo, seu campo. Na implicação do pesquisador é que se encontra um dos mais valiosos dispositivos de trabalho no campo. É a partir de sua subjetividade que afetos e sensações irrompem, sentidos são dados, e algo é produzido.

O conhecimento, por sua vez, emerge do plano de forças que compõe a realidade, ora operando em prol daquilo já estabelecido, ora operando a favor de agenciamentos produtivos, de acontecimentos que trazem o novo, processual e singularmente. Mas sempre tentando desarticular as práticas e os discursos instituídos, elucidar os processos complexos, as relações despotencializadoras que impedem a invenção - é nesse jogo que se dá a construção do conhecimento. Vale lembrar que, nessa perspectiva, o rigor e a precisão localizam se exatamente na sustentação da pressão exercida pelas forças desses planos, que, como vimos acima, possuem funcionamentos distintos, ora tendendo à estabilização, ora à caotização. Dessa maneira, a cartografia se contrapõe às pesquisas cientificistas tradicionais, objetivando romper com as dicotomias teoria-prática, sujeito-objeto, articulando pesquisador e campo de pesquisa.

Considerações Finais Tendo em vista que a realidade não é dada, mas sim construída também através de produções de conhecimento que se constituem como práticas discursivas, sociais e históricas, precisamos nos indagar acerca de qual psicologia estamos produzindo. Nesse sentido, podemos pensar, retornando à complexidade e aos impasses atuais da psicologia, pontuados no início desse texto, quais os efeitos da produção de conhecimento que geramos e sua efetiva contribuição para o que ocorre no mundo ao nosso redor. Sabemos que as respostas a essas questões são transitórias e locais, encontrando-se nos impasses que enfrentamos em nosso cotidiano de trabalho. Com certeza, os paradigmas emergentes e a cartografia ainda constituem desafios para nós, pesquisadores formados dentro de uma tradição moderna, acostumados a fragmentar, a racionalizar e a perseguir a verdade. Esse é um campo em construção, que combate uma lógica da racionalidade hegemônica na pesquisa, e se fundamenta, como salientam Barros e lucero (2005), em uma perspectiva ético-política que "afirma a vida na sua potência de diferenciação, nas suas modulações, na sua polaridade, lutando contra diferentes formas de captura colocadas em funcionamento por modelos padronizados de ser e estar no mundo" (p.7).

Nessa perspectiva, supomos que a cartografia aponta para a construção de saídas e inspirações para quem se propõe a estudar a realidade, promovendo uma flexibilização metodológica, que tem como intuito escapar da reprodução e do acomodamento intelectual, características necessárias para acompanhar as mudan ças em curso na Psicologia. Entretanto, no nosso entender, também a cartografia contém riscos. O primeiro deles, e o mais usual, é ser utilizada como um modelo, um padrão a ser seguido, usado em obediência à nossa formação dentro do paradigma moderno, fórmula que se afasta sinistramente do que esta propõe: a ousadia de rastrear a heterogeneidade, a complexidade. Nesse sentido, operaria para a reprodução e não para a criação, estancando a circulação da vida, operando cortes e recortes no processo de pesquisa, organizando de forma fascista o objeto de estudo e desqualificando de maneira transcendente outras formas de pesquisar. Outro risco que percebemos no uso desse método é o da produção de trabalhos sem fundamentação, que constituem um aglomerado de saberes desconectados. Embora seja preciso escapar à postura defensiva de correntes da Psicologia, sejam as adeptas do paradigma moderno, sejam as seguidoras dos paradigmas emergentes, não é desejável, nesse processo, encobrir confusões conceituais, apresentando-se superficial e leviano com a produção de conhecimento. Essa também não é a proposta desse método. A cartografia exige rigor e, no caso, não se trata somente da sustentação da singularidade e da invenção, mas também o uso dos conceitos incorporados à processualidade da pesquisa, sustentando a pressão exercida pelo plano de forças no território acadêmico. Por outro lado, seu uso não deve ser dogmático, hermético. A força dos conceitos localiza-se fora deles, em sua potência de criar, em sua capacidade de associar ideias, incitar pensamentos, leituras, de entrecruzar linhas e pontos temporariamente arranjados, para mais adiante serem desconectados ou reconectados em outra composição. Os conceitos sempre possuem um compromisso com o campo problemático que lhes dá sentido, gerando uma consistência que unifica traços intensivos, promovendo formas de expressão, e não devem ser desconsiderados, pois "os conceitos são exatamente como sons, cores ou imagens, são intensidades, que lhes convêm ou não, que passam ou não passam" (Deleuze & Parnet, 1998, p. 12), vigorosos dispositivos para a presença da realidade, potentes intercessores para a invenção.

Acreditamos na necessidade de apostar em produção, transmissão e aplicação do conhecimento em Psicologia, não de maneira reprodutiva e sedimentada, mas de forma que valorize a singularidade e a invenção, arriscando novas maneiras de pensar e também de viver. Somente sustentando a heterogeneidade da vida e da realidade podemos contribuir para uma expansão da Psicologia que nos conduza a outras práticas sociais, como estamos sendo convocados a fazer. De acordo com Zourabichvili (2004), a vida, a partir de um raciocínio deleuziano, pode ser entendida como uma potência, uma positividade indeterminada e informe, que é em si criação, ao mesmo tempo em que coexistem fechamentos e reproduções. A vida é rizoma, e pode ser percorrida em diversas direções, sendo reinventada em cada viagem e por cada um que a percorre. É feita de direções flutuantes, que transbordam, sem remeterem a uma unidade. Isso não seria o próprio ato de conhecer/pesquisar? Observamos que a produção de conhecimento calcada na cartografia implica um exercício de desapego às formas acadêmicas dominantes e instituídas, ainda que elas estejam imanentemente presentes. Nesse sentido, é preciso aventurar-se na criação de um circuito de conhecimento que atue como um dispositivo para formar planos de expansão da vida, para expressar e encarnar as sensações que as relações, a exterioridade, os meios estão produzindo nas subjeti vidades, religando a pesquisa com a vida.

Notas

  • Este texto faz parte da pesquisa intervenção cartográfica "As relações equipe-família no Centro Psicopedagógico Renato De Avelar Azeredo", financiada pela Fundação de Amparo à Pesquisa de Minas Gerais - FAPEMIG, abordando os estudos teórico-metodológicos do projeto.

1 A palavra "paradigma" foi introduzida por Kuhn (1975) para descrever uma troca do modelo dominante em uma ciência, possuindo dois significados: um, ligado à constelação de crenças, valores e técnicas que afetam toda comunidade científica, e o outro, ligado ao modelo que embasa as transformações científicas. Nesse texto é usada no segundo sentido. 2 Os termos pesquisa-ação e pesquisa participante têm a mesma origem, a Psicologia Social de Kurt Lewin, e alguns pontos em comum, tais como a crítica à pesquisa tradicional, ao distanciamento entre sujeito e objeto de estudo, à participação da população pesquisada e à necessidade de transformação social. Haguette (1987) coloca que, apesar desses vários pontos unificadores, há uma diferenciação de terminologia relacionada aos países em que elas ocorrem. Na Europa, principalmente na França, este tipo de pesquisa recebe o nome de pesquisa-ação, associada à corrente psicossociológica, e direciona-se para as instituições sociais e para os movimentos sociais. Na América Latina, esse tipo de pesquisa recebe o nome de pesquisa participante e caracteriza-se por um distanciamento da corrente psicossociológica, fundamentando-se nos princípios humanistas, marxistas e religiosos. Preocupada com as desigualdades sociais, teve forte influência de Paulo Freire. 3 Ainda com esse mesmo objetivo, embora com metodologias distintas, percebemos a genealogia de Michel Foucault e as propostas construtivistas baseadas nos Novos Paradigmas, fundamentando pesquisas na Psicologia. A genealogia é um método com forte preocupação com a produção de modos de subjetivação que atravessam e atualizam os saberes e as relações de poder. Busca apreender a relação entre os sujeitos e a sociedade, atravessados pelas práticas discursivas e pelo momento histórico. Em Foucault (2004), a genealogia parte da realidade como campo de forças, como luta de intensidades e trabalha com uma noção de história "efetiva" que se contrapõe à história tradicional, que lida com a temporalidade linear, a homogeneidade, a busca da origem e da verdade. A história "efetiva" é genealógica e se produz a partir de uma fragmentação da linearidade, destacando a singularidade do acontecimento. Os Novos Paradigmas correspondem a mudanças no pensamento científico contemporâneo, ocorridas em diversos campos: na Física e na Química com Ilya Prigogine; na Biologia com Humberto Maturana e Francisco Varela; na Cibernética de segunda ordem com Henry Von Foerster. Essas ideias são orientadas para a complexidade e embasadas na premência de se trabalhar com o acaso, com o indeterminismo, com a incerteza. Os Novos Paradigmas fundamentam as propostas construtivistas no campo da pesquisa e insistem que a realidade é sempre construída e atravessada a todo instante pela autorreferência e pela reflexividade (Schnitman, 1996). 4 As ideias de Gilles Deleuze e Félix Guattari recebem vários nomes, dentre eles, Filosofia da Diferença, Pragmática Universal, Paradigma Estético, Paradigma Ético Estético, não somente Esquizoanálise, uma vez que os autores não tinham preocupação com a reprodução dos nomes e conceitos.

Referências Bibliográficas Amatuzzi, M. M. (2006). A subjetividade e sua pesquisa. Memorandum, 10, 93-97.acesso em 25 de agosto, 2006, em http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/a10/amatuzzi03.htm [ Links ] Barros, M. E. B. & Lucero, N.A. (2005). A pesquisa em psicologia: construindo outros planos de análise. Psicologia e Sociedade, 17(2), 07-13. Acesso em 12 de fevereiro, 2008, em http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0102-71822005000200002&lng=pt&nrm=iso [ Links ] Benevides de Barros, R. (2005). A psicologia e o sistema único de saúde: quais interfaces? Psicologia e Sociedade, 17(2), 21-25. Acesso em 12 de agosto, 2006, em http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0102-71822005000200004&lng=pt&nrm=iso [ Links ] Chizzotti, A. (1998). Da pesquisa experimental. In A. Chizzotti, Pesquisa em ciências humanas e sociais (2ª ed.,